Vitor Evangelista
A destemida ideia de transformar em ficção o crime envolvendo a família Von Richthofen não poderia ser mais ousada. O conturbado cenário do Cinema nacional, que encontra no público do país um asco à qualquer obra que fuja dos “bons costumes” ou da comédia irreverente que a Globo germinou na última década, é carente de filmes corajosos o bastante para, na mesma moeda, adereçar temas sensíveis e fazê-lo ao alcance do grande público. Com isso, A Menina que Matou os Pais já nasceu com promessa de grandeza.
O argumento de Raphael Montes e Ilana Casoy veio a partir dos autos do julgamento de Suzane von Richthofen, Daniel e Cristian Cravinhos, condenados pelo bárbaro crime que tomou parte quatro anos antes da sentença, na noite do Halloween de 2002. Se tratando de dois importantes e contraditórios discursos, a equipe por trás da obra decidiu por quebrá-la ao meio, sem ordem de exibição ou cronologia, fazendo essa divisão com base na visão de cada um dos réus.
Manobra inédita no Cinema brasileiro, a fagulha de criatividade já foi posta à prova em Dois Lados do Amor (The Disappearance of Eleanor Rigby, de 2014), que faz uso da difusão narrativa em prol de um casal em processo de se apaixonar. Diferente da ideia original, A Menina que Matou os Pais e O Menino que Matou Meus Pais são filmes irmãos, um tanto parecidos demais, mas inevitavelmente complementares e repetitivos. Tanto é que a estratégia de lançamentos nas salas de cinema buscava a ideia da compra de apenas um ingresso, mas que valeria para a “sessão completa” do drama.
O que ninguém previu foi a pandemia, que lacrou as salas e atrasou o lançamento das obras por mais de um ano. Deu tempo da estrela Carla Diaz entrar no elenco do Big Brother Brasil 21, engatar um romance, ser eliminada por conta desse rolo e sair antes da metade do programa. Deu tempo do burburinho dos filmes chegar à Netflix aumentar e diminuir, deu tempo da antecipação bater no teto e despencar até o chão. Até que, de surpresa, o Amazon Prime Video anunciou que daria um lar aos macabros contos do crime que chocou o Brasil no começo do milênio.
Em A Menina que Matou os Pais, somos guiados pelo depoimento de Daniel (Leonardo Bittencourt), no dia do julgamento, em meados de 2006. Dessa forma, os dois filmes começam no tribunal, com o mar de gente gritando profanidades e pedindo a cabeça do trio acusado. O roteirista Raphael Montes, que fez seu nome escrevendo romances policiais, recomendou que O Menino fosse assistido antes, para que o público primeiro se habituasse com uma Suzane anestesiada e perdida, para então dar play em A Menina e se deparar com sua versão ardilosa e cabeça-quente.
Por mais que de fato não exista um manual de como mergulhar nessa história, por experiência própria, é possível afirmar que começar por O Menino oferece mais nuances às interpretações do casal principal. A dupla modula muito bem as emoções nesses oitenta minutos iniciais, mas as extrapola verdadeiramente na uma hora e vinte seguinte, que se centra em uma Suzane venenosa e cheia de picos de raiva, tensão e êxtase. Bittencourt se beneficia dessa maratona, pelo fato de começar a história como um manipulador e terminá-la com a mesa invertida, quase arrependido de ter deixado se levar pela namorada.
Enquanto obra de ficção, os filmes não esbaldam tamanha liberdade artística que obras estrangeiras sobre assassinos capitalizam em cima por décadas a rodo, mas a história se adequa razoavelmente bem aos moldes do tribunal. Se Charlize Theron pode vencer um Oscar ao dar vida à Aileen Wuornos, por que então fazer Cinema em cima da história de Suzane von Richthofen é visto como um passo para além do limite do bom senso? Carla Diaz, em um show à parte e completamente imersa na psique fragilizada de sua protagonista, surpreende positivamente, e dá o nome, carregando com vigor as quase três horas de duração das obras somadas.
Longe das interpretações, o problema dos filmes reside em sua concepção de nascença. É preciso um jogo de cintura e tanto para contar uma história cujo desfecho é de conhecimento de um país inteiro. Imagine, então, contar essa história duas vezes, espelhando-a da maneira mais simplória e clichê possível. Carla Diaz vira a chave entre triste, louca ou má, operando ao que lhe é comandado. Em O Menino, ela é meiga e aérea, mas a peruca desidratada da Anna Wintour que colocaram na atriz na cena do tribunal tira qualquer credibilidade visual da direção.
Direção essa a cargo de Mauricio Eça, que insiste em um chove, não molha desconcertante, dando alicerce aos filmes seguindo as mesmas batidas narrativas, e filmando as cenas sob duas perspectivas, ou 8, ou 80. Por isso, quando o público capta a essência do filme 2 (seja lá qual for a sua ordem de exibição), a experiência de acompanhar o mesmo enredo duplicado diminui o impacto. O aspecto exaurido nas produções é o enlace romântico de Suzane e Daniel, explorado de maneira simples, maniqueísta e sem uma pitada de originalidade ou relevância.
Carla Diaz faz cosplay de Chiquititas quando interpreta uma Suzane na faixa dos 15 anos, e a progressão temporal anula qualquer desenvolvimento de personagem que o público deseja. No filme de Daniel, Suzane é a vilã, a bruxa Keka e a mandante do crime. No filme de Suzane, ela apenas é a mocinha levada ao mau caminho pelo namorado delinquente. Não há profundidade no namoro, que se estende por anos, ou na personalidade dos retratados em tela.
Astrogildo (Augusto Madeira) e Nadja (Debora Duboc) aliviam o clima dos filmes, injetando vitalidade aos pais de Daniel, que recebem Suzane de braços abertos e nutrem um carinho familiar por ela. No lado oposto, as vítimas do crime são interpretadas sem qualquer respaldo ou cuidado, deixando as cenas com Manfred (Leonardo Medeiros) e Marísia (Vera Zimmermann) repetidamente derivadas. O jovem Andreas, irmão caçula de Suzane e interpretado por Kauan Ceglio, não recebe uma migalha de história, e a característica mais marcante de sua passagem pelos filmes é o cabelo ruivo tingido com papel crepom.
Cristian (Allan Souza Lima) se enquadra no clichê esperado do hétero dos anos 2000, que trabalha em um bico aqui e acolá, e insiste em fazer pegadinha com o irmão mais novo, ocasionalmente envolvendo ovos. A partir do momento que ele é inserido no plano do assassinato, o texto não se preocupa em satisfazer o público e mostrar o elo de irmandade entre os Cravinhos. A passagem de irmãos delinquentes para irmãos criminosos não surte efeito nenhum em A Menina que Matou os Pais. Suzane, visivelmente afetada pelo que diz respeito às caras e bocas de Diaz, manda, e os homens obedecem.
Quando, enfim, os filmes chegam ao “O Dia”, a descarga é apertada, relegando o crime a menos de vinte minutos de tela, combinadas as duas rodagens. É claro que, para uma obra “true crime” ser boa, sangue nenhum precisa ser espirrado na câmera (Mindhunter provou isso à exaustão), mas a saída não é segurar a expectativa por quase noventa minutos, para depois dar para trás e preferir o lúdico ao real. Ao passo que a iluminação brinca com tons saturados a fim de expressar o medo, a raiva e a conclusão, os filmes de Mauricio Eça pecam pela falta de pulso firme.
Se a arrojada abordagem de dividir o crime ao meio e narrá-lo sob mundos diferentes fosse espelhada para as demais pontas da produção, estaríamos frente a uma obra rica e multifacetada. Mas a criatividade morre no berço, tornando a maratona de quase três horas em uma vitrola arranhada, nada viril e com pouco a dizer. A Menina que Matou os Pais evoca tropos que já deveriam estar enterrados no audiovisual. Ninguém precisa assistir a ruína de uma mulher “louca”, vingativa ou assassina, motivada por um passado difícil e um presente mais complicado ainda.
Ou melhor, ninguém precisa assistir a mais uma versão clichê e batida dessa mesma narrativa. Todos os anos, cineastas e roteiristas proeminentes fazem uso do comum para revitalizar uma fórmula, injetando vida a essas histórias. Se depender do tato artístico e da pegada autoral da dupla de filmes, não importa se foi A Menina ou O Menino quem matou, o gênero do true crime pode ser enterrado no mesmo túmulo.