Nathalia Tetzner
Oito longos tentáculos presos no aquário de um medonho porão: o polvo nunca foi uma figura tão imponente quanto em A Criada (2017), filme sul-coreano assinado por Park Chan-Wook. Inspirado no romance Na Ponta dos Dedos, da escritora Sarah Waters, o longa traz o protagonismo lésbico da Era Vitoriana britânica para o contexto da Coreia ocupada por japoneses. Erótico e poético, o espectador perde o fôlego com as cenas menos sensuais enquanto se esquiva das leituras fetichizadas, acompanhadas por xilogravuras lascivas como O Sonho da Mulher do Pescador, em que a forma feminina é sexualmente devorada por dois moluscos marinhos.
Acostumado a pintar as telas de Cinema com o vermelho da violência e da vingança, Chan-Wook continua cruel como em Oldboy (2005), mas deixa o sangue de lado para explorar o azul da prisão interna e externa das personagens Sook-Hee e Hideko. Com a beleza da fotografia impecável de Chung-hoon Chung, ele alcança o perfeito equilíbrio entre o sagaz e o sensível. A sinopse não diz nada sobre o desenrolar do enredo, porém, o diretor respeita a sua audiência com reviravoltas que fazem sentido e gentilmente brincam com os pressupostos gerados pela primeira parte da narrativa.
Ler a descrição de The Handmaiden (Agassi) ao menos contribui para o entendimento da atmosfera de traições e mentiras. Em resumo, Sook-hee (Kim Tae-ri) é contratada por um farsante, o Conde Fujiwara (Ha Jung-woo), para ajudá-lo a furtar a herança de Hideko (Kim Min-hee), sobrinha de um coreano que auxiliou a invasão japonesa em troca de uma mina de ouro. O tio Kouzuki (Jo Jin Woong), alimenta a sua obsessão por livros raros e pretende se casar com a jovem de mesma linhagem, a quem treinou desde a infância para realizar leituras carnais frente a plateias masculinas.
Três partes dividem o constante jogo mental da película. De início, a ingenuidade do público causada pela montagem do filme permite descobrir como uma vigarista se tornou a criada de uma herdeira nipônica. Segundamente, os planos de Sook-Hee em contribuir ativamente com o roubo da fortuna de Lady Hideko viram de ponta-cabeça quando a infância da mulher solitária é abordada ao lado da proposta original de Conde Fujiwara em libertá-la. Já no terceiro ato, a sequência de plot-twists atinge o seu apogeu com um final digno da paixão tempestuosa entre as duas protagonistas.
Quando tudo parecia estar morto e nada mais podia florescer, a intensidade e ambição de uma criada encontrou o seu lar na calma e no contentamento de uma herdeira. “A filha de um ladrão lendário, que costurava casacos de inverno com bolsas roubadas. Ela mesma uma ladra, batedora de carteiras, vigarista. A salvadora que veio para mudar a minha vida. Minha Sook-hee.” O carisma e a sintonia das duas jovens são os fatores responsáveis pelo filme continuar interessante durante todos os momentos das suas quase duas horas e meia de exibição.
Assim como os tentáculos da xilogravura O Sonho da Mulher do Pescador, publicada em 1814, A Criada também enlaça e sufoca quem assiste. O medo e o clima mórbido da época, marcada pela ocupação do território coreano pelo Japão, tomam conta até mesmo dos cenários mais floridos. Não há diferença entre o sadismo da biblioteca do tio Kouzuki e a paisagem de uma cerejeira esplêndida, uma vez que o ponto de vista do filme cruelmente representa o sentimento de aprisionamento que a Lady Hideko sente em todos os cantos da grande propriedade.
Seja no tormento do suícidio da tia da herdeira nipônica, ou seja nos próprios limites e estereótipos impostos pela sociedade do seu tempo, o longa tenta cavar cada vez mais fundo rumo ao sensível que permeia o entrelace do casal de jovens. Tenta, pois as lentes masculinas não são capazes de captar por completo a complexidade do feminino em cena. Park Chan-Wook, no entanto, faz um ótimo trabalho quando comparado com a vasta maioria de diretores homens que propagam a hiperssexualização típica do male gaze, a exemplo do olhar deturpado de Abdellatif Kechiche em Azul é a Cor Mais Quente (2013).
Ao longo de The Handmaiden, a fetichização acontece apenas quando o roteiro demanda. No caso, o maior desconforto ocorre quando os olhares de uma dezena de homens se voltam para Hideko, obrigada por seu tio a realizar a leitura e a encenação de obras graficamente ilustradas. Por outro lado, o sexo entre a Lady e Sook-hee não perde a doçura para a explicitidade e não se prolonga por mais tempo do que o necessário. Com uma representação genuína do amor lésbico, a película se aventura pelo desconhecido e traz a sensibilidade para uma comunidade acostumada a ser bruscamente pintada nas telas de Cinema.
Favorita das listas de obras para assistir durante o Mês do Orgulho, a película sul-coreana desponta como uma narrativa concisa e surpreendente. Não à toa, o longa de Chan-Wook concorreu à Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2016 e foi contemplado como o Melhor Filme Estrangeiro pelo British Academy Film Awards (BAFTA). O ambiente de infinitas possibilidades e interpretações permite constatar que A Criada é um suspiro em meio aos clichês datados. Imponente como o polvo no porão do tio Kouzuki, a história de Sook-hee e Lady Hideko possui mil tentáculos que simbolizam as ramificações e o acolhimento do seu amor.