Larissa Vieira
A Netflix entrou para a lista de animações para o público infantil com mensagens reflexivas para o público adulto. A Caminho da Lua (Over the Moon) chega para encantar as crianças com luzes, personagens engraçados e um enredo divertido enquanto leva os telespectadores mais velhos a um mundo de reflexão. Lançado em outubro de 2020, a animação musical acompanha a trajetória de Fei Fei, uma criança chinesa que sofre com a perda da mãe. Anos mais tarde, quando seu pai, Ba Ba, decide começar uma nova família, a agora pré-adolescente aflige-se com esse novo cenário e decide recorrer até a deusa da Lua, Chang’e.
O mito de Chang’e foi contado à protagonista desde criança pela sua mãe: segundo a lenda, Chang’e e Hou Yi eram o retrato de casal perfeito e salvadores da colheita, já que, na terra, havia 10 Sóis que queimavam as plantações, fazendo com que as pessoas morressem de fome; Hou Yi então, para salvar a pátria, atirou em 9 desses Sóis com um arco e flecha. Como recompensa, ele recebeu um elixir de imortalidade para dividir com sua amada, porém, durante um assalto, ela acabou tomando todo o frasco, o que a levou até a Lua. Portanto, em busca de provar para o pai que o mito é real e honrar a história de sua mãe, Fei Fei decide ir até a Lua!
A trajetória do filme caminha por dois diferentes cenários: de um ponto de vista, Fei Fei, seu coelho de estimação, Pulinho e Chin, seu futuro irmão vivem uma aventura divertida na Lua. Já por outro, vemos a jovem, com muito pesar, passar pelos 5 estágios do luto: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação.
A construção de uma deusa popstar e a surpresa de Fei Fei
Assim que chega na Lua, Fei Fei encontra um cenário diferente do que imaginava; bem colorido e com Chang’e sendo uma diva pop para os “moradores” locais. A deusa então age como superior e quando encontra a protagonista pela primeira vez, decide que quer um presente da Terra, que seria sua única maneira de encontrar Hou Yi na Lua. É então que, destemida a fazer de tudo para provar que Chang’e é real, Fei Fei se isola até de seu fiel escudeiro, Pulinho, e do futuro irmão, e enfrenta as mais difíceis aventuras na Lua.
São nesses momentos em que a Netflix mostra os momentos mais frágeis de uma pré-adolescente em luto. Sua determinação para conseguir o que quer soa, algumas vezes, como egoísta, principalmente para o público infantil que não entende o que se passa com a garota. Um sentimento de ambição exagerado cresce cada vez mais dentro da personagem, assim como sua frustração por não conseguir o que quer, evidenciando as fragilidades de Fei Fei.
A raiva, barganhas e a depressão construídas em um cenário infantil
A Caminho da Lua usou dos recursos já conhecidos em obras, como Divertida Mente (Pixar), para tornar a animação leve e colorida para o público infantil. Durante os momentos mais difíceis do luto de Fei Fei, os alívios cômicos são gradativamente inseridos. A história vai tornando-se sombria e triste, enquanto Pulinho e um novo personagem, Gobi, crescem, desconstruindo o cenário “muito abominável” para o público infantil.
A fotografia do filme também se transforma para cada vez menos colorida, quantas mais frustrações foram surgindo, até o momento em que o mundo colorido e divertido se torna totalmente preto e sombrio. Neste instante, Fei Fei se isola totalmente e enfrenta seu período de maior tristeza, a depressão; “isolada” na Lua, o vazio torna impossível a protagonista atingir seu objetivo. A produção, então, é inteligente ao mostrar que não só Fei Fei enfrenta a depressão, já que o mesmo acontece com Chang’e, que não recebe seu presente, também não atinge seu objetivo.
Então, Over the Moon passa sua mensagem: até “deuses” passam por seus momentos de fragilidade e são capazes de entender a dor do outro, de modo que ninguém é herói de ninguém, e sim, cada um é seu próprio herói. Não só com vestimentas, mas também com o cenário, a produção desconstrói a imagem de deusa popstar de Chang’e e à eleva ao nível de Fei Fei, passando, de maneira sútil, sua principal mensagem às crianças, e aos adultos – principalmente.
Assim, o mundo se torna colorido novamente, construindo o cenário ideal para as crianças que veem como um “ela conseguiu!” e para os adultos que entendem que Fei Fei precisou passar por esses momentos para chegar ao último estágio do luto: a superação. As luzes coloridas e a Lua como um espaço divertido e animador do início são reconstruídos, fazendo com que a fotografia do filme se torne muito mais agradável de se ver novamente.
A representatividade asiática na produção norte-americana
A Caminho da Lua é dirigido pelo vencedor do Oscar de Melhor Curta de Animação em 2018, Glen Keane, renomado criador das famosas princesas da Disney, A Pequena Sereia, A Bela e a Fera e Aladdin. O ilustrador, norte-americano, tomou a frente da produção ao lado de Gennie Rim, produtora asiática, conhecida pela série Trash Truck (Zé Coleta) e Peilin Chou, que trabalhou em Kung Fu Panda 3. Gennie e Peilin foram responsáveis por trazer a cultura chinesa para dentro da produção e Gennie já revelou em entrevistas ter uma similaridade com a história de Fei Fei. Já o roteiro foi escrito pela norte-americana Audrey Wells, que trabalhou em outras grandes obras como O Ódio que Você Semeia.
Enquanto Over the Moon ainda desaponta na representatividade, o elenco de dubladores originais é composto inteiramente por asiáticos e descendentes, contando com nomes reconhecidos como Ken Jeong (Gobi), Cathy Ang (Fei Fei), Sandra Oh (Sra. Zong) e a vencedora do Grammy de Melhor Álbum de Musical Teatral por Hamilton, Phillipa Soo, que dá a voz a Chang’e.
A dublagem brasileira é composta pelos conhecidos Sylvia Salustti, no papel da deusa, Michelle Giudice no papel de Fei Fei e Glauco Marques como a criatura Gobi. Na versão brasileira ainda, a canção principal do filme, Rocket To The Moon (Vou Voar), é interpretada brilhantemente pela cantora Priscilla Alcântara e a versão ganhou até um clipe.
A Caminho da Lua consegue vencer Soul?
A produção concorre ao Oscar 2021 de Melhor Animação, ao lado de Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica, Shaun, o Carneiro, o Filme: A Fazenda Contra-Ataca, Soul e Wolfwalkers. A similaridade dos indicados é que eles também tiveram uma construção de narrativa similar à produção da Netflix. Os longas foram produzidos para o público infantil enquanto buscam passar uma mensagem maior ao público adulto.
Favorito pelo público, Soul dispara na frente da disputa por toda sua popularidade, logo seguido por Dois Irmãos, com mérito total da Disney. Porém, A Caminho da Lua aprofunda mais no tema da morte, enquanto Soul traz uma mensagem sobre a vida. A produção ainda é vista como mais restrita pelo público por trazer em destaque a cultura chinesa, cenário não tão conhecido na lista dos vencedores de Melhor Animação da Academia, que premia as produções da Disney, na maioria das vezes.
Mesmo que a animação não leve o prêmio para casa, ela merece um destaque maior, já que consegue reproduzir toda sua narrativa do luto de maneira leve e divertida e, principalmente, bem construída. O cenário chinês da obra também foi muito bem criado, o que dá destaque à produção. Ao pé da letra, A Caminho da Lua é um filme sobre uma menina teimosa que decide ir à Lua e encontrar sua deusa, enquanto de fato mostra um realismo na dor do luto e todas suas fases.