Iris Italo Marquezini e Nathan Sampaio
Em 2016, durante o painel da Sony na E3, o público foi surpreendido com a imagem inusitada de um garotinho brincando na neve. Uma voz chamava a criança e ela, a contragosto, entrava de volta em casa, interrompendo a diversão. Então, uma figura surge das sombras. Barbudo, albino e mais forte do que nunca, o público do evento começa a exclamar palavrões felizes ao perceber que Kratos, o anti-herói da série God of War, está de volta. Em 2018, o game finalmente chegou nas mãos dos fãs e recebeu de braços abertos novos interessados na história do Fantasma de Esparta.
God of War se passa anos depois dos eventos dos jogos anteriores. Kratos reconstruiu sua vida em uma terra distante junto de sua esposa, Faye, e seu filho, Atreus. A história se inicia com o protagonista se tornando viúvo e tendo que cumprir o último desejo de sua amada, jogar suas cinzas do pico mais alto dos nove reinos. No entanto, a trajetória do personagem é atravessada por diversos desafios, combates, segredos e desentendimentos que, durante toda a jornada, poderá reconectar ou separar para sempre a relação pai e filho.
O game pode ser considerado um soft reboot da série, pois ao mesmo tempo que traz elementos inéditos – como cenário, mitologia, temática e personagens – o passado e a personalidade do protagonista se mantêm. Dessa forma, novos gamers são apresentados ao mundo de God of War, enquanto os mais antigos retornam àquele universo de um jeito diferente.
Retratando uma jornada de amadurecimento e conexão, o sétimo capítulo da franquia e o quarto da linha principal é o mais dramático e com a melhor construção narrativa. Tendo personagens complexos, relações conturbadas e interligadas, história envolvente e uma reinvenção da mitologia nórdica, o revival era tudo o que essa série precisava para captar novamente a atenção da comunidade gamer.
O jogo de 2018 apresentou a melhor versão do Kratos já vista. Isso porque ele deixou de ser um boneco unidimensional que só expressa raiva para se tornar um personagem com uma gama imensa de sentimentos. Durante a viagem com Atreus, pode-se observá-lo expressando tristeza, preocupação, orgulho, amargura, vergonha e até mesmo medo. Todo esse espectro de emoções torna o protagonista mais crível e humano, por mais que ele continue sendo um deus.
É interessante notar como a morte sempre foi a força motriz que guiou Kratos e como ela foi ressignificada nesse reboot. Nos primeiros episódios, a perda da sua família gerava raiva e indignação, motivando a cruzada contra Áries e os deuses do Olimpo. Enquanto no capítulo mais recente, a viuvez fez do deus da guerra alguém triste, mas que foi somente por causa desse acontecimento que ele pôde se conectar com o filho, o qual virou sua motivação ao final.
A evolução fenomenal desse personagem deve-se à presença do outro protagonista do jogo, Atreus. Aparentando ter dez anos de idade, o filho de Kratos desempenha um importante papel na jornada, pois pode ser considerado o coração da narrativa, trazendo sentimentalismo com sua personalidade e atitudes. Enquanto controlamos o seu pai durante o gameplay, vamos conhecendo e nos afeiçoando por ele de tal forma que, ao final da trama, nos sentimos profundamente conectados a ambos.
Atreus é o ponto de leveza, pois enquanto o Kratos carrega muito amargor dentro de si e é muito silencioso durante a maior parte do tempo, seu filho sempre comenta os acontecimentos, conversa com o jogador e personagens não jogáveis (NPCs), além de sempre querer se provar ao pai, o que já demonstra a relação de ambos. Grande parte da qualidade da história vem por causa da presença desse personagem. Sem ele o enredo poderia se tornar genérico, assim como seus antecessores.
A relação entre pai e filho é um dos pontos altos da narrativa. Uma conexão que é muito fria e distante no início se transforma em algo mais afetuoso e carinhoso, e isso só ocorre porque os heróis também mudam durante o trajeto. Kratos tem medo do seu passado e não quer revelá-lo; já Atreus não se sente amado e sofre muito com a perda da mãe. Todos esses temas são trabalhados de forma exemplar durante a trama para que ambos quebrem suas barreiras sentimentais e possam se entender profundamente.
Talvez o ponto mais fraco dessa relação é quando Atreus descobre ser um deus, pois logo isso sobe à cabeça da criança, tornando-o mais cruel em suas falas e atitudes, menosprezando os mortais. O principal problema não é quando isso ocorre, mas quando o personagem toma consciência de suas ações e entende que é errado agir daquela forma, trazendo uma mudança de personalidade muito abrupta, que prejudica a imersão. Se fosse uma transformação gradual, deixando o lado humano aflorar aos poucos, beneficiaria a narrativa e a conexão do player com o recém descoberto semideus.
Muito da veracidade dessa relação se dá porque o diretor do game, Cory Barlog, na época do desenvolvimento do projeto, se tornou pai e o sentimento se refletiu na jornada do jogo. Inclusive, esse e outros temas da produção foram mostrados no documentário Raising Kratos, lançado em 2019. Mas não é somente com esses dois personagens que a trama é construída. Há ainda outros encontros que aparecem ao longo da narrativa, que auxiliam ou atrapalham os protagonistas. Uma dessas interações marcantes se dá com Brok e Sindri, dois anões ferreiros que surgem para ajudar a melhorar os equipamentos de Kratos e Atreus. A dupla tem uma richa entre si e se alfinetam nos momentos de diálogo, tornando suas participações pontuais, inesquecíveis.
A bruxa da floresta também é uma personagem importantíssima na narrativa, pois desenvolve uma relação de respeito e conflito com Kratos. O game consegue criar uma aura de mistério muito cativante sobre sua identidade, pois durante grande parte da história não sabemos seu nome verdadeiro, suas motivações ou extensão de seus poderes. Contudo, aos poucos tudo isso é apresentado e cada descoberta é ainda mais surpreendente.
A dinâmica do jogo também é drasticamente alterada por Mimir, o homem mais sábio dos nove reinos, mas que, por conflitos com Odin, é aprisionado em uma árvore indestrutível e torturado diariamente. Esse personagem faz um trato com Kratos, no qual o deus precisa cortar e reanimar sua cabeça e, em troca, ele informará qual é a montanha mais alta e como chegar nela. Tendo uma personalidade sarcástica, irônica e tagarela, essa figura complementa a dupla com suas histórias sobre o mundo e fazendo comentários divertidos durante a jornada.
Por último, mas não menos importante, temos o antagonista chamado de Desconhecido no começo da história, mas que na metade da narrativa descobre-se ser Baldur, irmão de Thor. Sua figura é muito complexa, pois ele é um deus que nunca se fere e não sente nada, e por razões bastante pessoais, passa a perseguir a dupla principal. O mais marcante do personagem é, com certeza, as batalhas épicas que ele trava com o player: desde sua primeira aparição, ele já mostra a sua grandiosidade e a dificuldade que será enfrentá-lo todas as vezes, e isso gera muita empolgação a cada encontro.
Os encontros com Baldur são apenas alguns dos vários momentos épicos que o jogo tem. Praticamente cada boss tem seu momento, sendo o Dragão o mais marcante dentre eles, mas até mesmo o combate com os trolls podem ser intensos da sua própria maneira. Para retratar os chefões, nada mais justo do que falar das icônicas Valquírias. É muito mais interessante enfrentá-las logo depois do final da história, já que encontrá-las é uma ótima oportunidade para descobrir novos locais no jogo e também são um excelente desafio. O mérito vai pelo fato de que cada Valquíria é única em suas habilidades, o que oferece mais algumas horas de diversão – ou estresse – para quem joga.
A diversão dessas lutas vem do fato de que o jogador é obrigado a realmente usar todo o arsenal de habilidades disponível para as lutas. Elaborar estratégias, reconhecer os movimentos e agir no tempo exato é crucial para um bom desempenho. Atreus, inclusive, é indispensável nesses momentos para evitar determinados ataques das inimigas que querem se libertar da maldição de Odin.
É importante ressaltar que os inimigos, que vão desde os mais simples draugrs até dragões, possuem visuais reimaginados de mitos antigos de forma bastante agradável ou até mesmo grotesca quando preciso. No meio do combate com diversos adversários ao mesmo tempo, é possível diferenciar cada criatura sem dificuldade; assim como o figurino de Kratos consegue torná-lo imediatamente reconhecível para os fãs mais antigos da franquia. Ainda assim, o novo visual situa o Fantasma de Esparta como alguém mais velho e dentro de outra mitologia.
E Atreus? Ele é simplesmente perfeito. Anos após o lançamento do jogo, é difícil pensar em uma escolha tão bem acertada quanto colocar o filho de Kratos como alguém longe da postura musculosa e estóica do pai. Embora com porte físico diferente, o garoto não se distancia dos pais a partir do momento que usa faixa vermelha do pai na cintura e o cachecol amarelo da mãe.
Todos esses detalhes, somados à atuação histórica da talentosa dupla Christopher Judge (Stargate SG-1) e Sunny Suljic (Mid90s e Sacrifício do Cervo Sagrado) resultaram em uma rápida identificação do jogador tanto com Kratos quanto com Atreus. A tecnologia de captura de performance utilizada pelo Santa Monica Studio conseguiu facilmente transmitir toda a habilidade e química que os atores compartilham entre si nos sets de filmagem.
Vale menção também a Alastair Duncan como Mimir, que definitivamente roubou a cena, e Danielle Bisutti como Freya, que trouxe um peso de tragédia genial para a personagem, muito bem adaptado pela atriz Beatriz Villa na dublagem em português. As performances na versão dublada de Ricardo Juarez, Lipe Volpato e Milton Levy – como Kratos, Atreus e Mimir, respectivamente – estão entre as melhores dos jogos originais da Sony.
O auge do game e que exemplifica o excelente drama da história está no momento em que Kratos enfrenta o seu medo do passado. No momento em que Atreus fica doente, o deus da guerra precisa buscar um artefato em Helheim, o submundo da mitologia nórdica, e para isso precisará das lâminas do caos. Só o caminho de volta para casa já possui um peso emocional gigantesco e, ao encontrar as armas, há um diálogo com o fantasma de Athena, que faz o protagonista se lembrar do monstro que foi um dia. No entanto, os motivos pelo qual ele empunha aquelas espadas é outro: o símbolo que remetia a sua dor agora é usado para proteção de sua família. Essa ressignificação de parte da história do personagem é genial e entusiasmante.
O que complementa em cheio as atuações e dá o tom verdadeiramente épico ao jogo é a brilhante trilha sonora de Bear McCreary (Anéis do Poder, Outlander e Battlestar Galactica). É por meio da trilha sonora que se transmite de forma ainda mais clara a masculinidade, o arrependimento e o amadurecimento de Kratos ao longo do enredo. É também por meio dela que compreendemos, sem ser vista em momento algum, a figura de Fey, a quem pertencem as cinzas que os protagonistas levam ao longo da jornada. O vocal da cantora feroesa Eivør Pálsdóttir dá o tom emocional preciso para a memória da mãe na história.
O fato de não haver flashbacks clichês mostrando a figura da mãe merece elogios, já que o jogo constrói a imagem dela a partir de elementos (geralmente na cor amarela) espalhados pelo mundo e também pelas conversas (ou muitas vezes, pela falta delas) entre Kratos e Atreus. A escolha da história inteira se passar em um único plano-sequência é um dos fatores que tornam game uma obra-prima tanto narrativa quanto técnica. A câmera quase documental coloca o jogador tão perto dos acontecimentos que, nos momentos mais calmos, absolutamente todas as sutilezas e peso das atuações podem ser percebidas. Da mesma forma, quando a ação acontece, toda a violência (transmitida por animações belíssimas cheias de gore) se destaca em cheio.
Dessa forma, percebemos um desenvolvimento de personagens muito bem construído por meio de centenas de linguagens não-verbais presentes na trama. Tudo isso aconteceu pela memorável direção de Cory Barlog, que soube juntar uma equipe genuinamente deslumbrante para tornar God of War (2018) real. Eventualmente, o projeto conquistaria merecidamente um dos prêmios mais cobiçados (senão o maior) da indústria de games: o prêmio de Jogo do Ano no The Game Awards de 2018. O jogo não só revitalizou a franquia a partir de um contexto mais maduro, como também serviu de inspiração para uma futura série do Amazon Prime Video.
A mesclagem de mitologias é um pontos fortes de God of War, já que leva em consideração todo o passado do protagonista no mundo grego, tendo deuses e acontecimentos aparecendo de forma pontual durante a história. Já o universo nórdico apresentado é fascinante, mesmo mostrando apenas personagens secundários dos mitos. Cada cenário, criatura, artefato e personalidade é detalhado o suficiente para ser, no mínimo, perfeito.
Também é louvável a adaptação que a equipe da Santa Monica Studios teve que fazer nas lendas nórdicas para incluir Atreus e Kratos no universo, já que a mera presença deles afeta diretamente relações, conflitos e até mesmo a hierarquia de poder. Junto disso, os desenvolvedores optaram por não mostrarem em tela os maiores nomes do panteão. Todos esses deuses são apenas citados, o que não reduz a relevância de Loki, Thor, Odin e até mesmo Týr com seu destaque e impacto no destino do protagonistas. O estúdio precisou evoluir e recontar os mitos de forma que não houvesse lacunas e ainda continuasse sendo coerente, como ocorreu magistralmente.
Para que toda essa experiência seja imersiva o suficiente, é necessário que a jogabilidade também esteja alinhada. Felizmente, ela é muito bem executada. Como esse capítulo é um soft reboot, a desenvolvedora decidiu inovar no gameplay. Enquanto os jogos anteriores pertencem ao gênero de Hack’n Slash com elementos de RPG, essa nova versão faz o oposto trazendo elementos de outros games como Dark Souls, Bloodborne e The Witcher 3: Wild Hunt.
Ao mesmo tempo que essa dinâmica torna o jogo único em relação aos anteriores da franquia e traz boas pitadas de estratégia (principalmente quando consideramos as lutas com as Valquírias), muito fica sem explicação. Algumas das estatísticas não aparecem transmitidas pelo gameplay e é preciso realmente parar e pesquisar para entender a diferença que elas fazem.
É o caso dos atributos e da construção de armadura, algo novo na franquia e que tem por objetivo fazer com que o player molde o seu próprio Kratos. Porém, essa adição não é tão bem balanceada, visto que certas habilidades e equipamentos possuem pré-requisitos, o que faz com que o jogador precise upar o que o game pede e não necessariamente o que ele deseja.
Os clássicos quick time events retornam nesta edição de 2018, porém de forma mais contida do que nos títulos anteriores. Nos capítulos lançados para Playstation 2 e 3 era comum a utilização desse recurso em qualquer combate, até mesmo os mais comuns, tanto que essa mecânica se tornou tendência entre outros títulos, como Asura’s Wrath e Dante’s Inferno. Já nesse soft reboot eles foram realocados para melhor imersão dos jogadores.
Há motivos de sobra para entender God of War como um dos jogos mais imersivos da última década. A ambientação da mitologia nórdica vai muito além dos diálogos expositivos. Por meio de templos, estátuas abandonadas e literais cadáveres de seres gigantes no horizonte, todos os elementos visuais que cercam a aventura de Atreus e Kratos possuem uma estética de um mundo grandioso envelhecido ao longo de milênios.
O reino de Álfheim, no qual acontece um embate constante entre os elfos claros e escuros, o Templo de Týr e a Casa da Bruxa é onde os designs épicos mais enriquecem os olhos do jogador. Todas essas muitas vezes literais ruínas de reinos antigos trazem a ideia de que os dois protagonistas são forasteiros em um mundo já muito bem estruturado.
A exploração de God of War é um dos pontos fortíssimos do jogo. Após terminar a história principal, é fácil ficar de queixo caído ao ver o quanto ainda é possível explorar nas mais diversas localidades, tendo até mesmo reinos secretos para serem desbloqueados. Existe um vasto mundo de missões paralelas que expandem o universo e a relação de Atreus, Kratos e Mimir, detalhe mantido para a sequência God of War Ragnarok (2022).
Opções não faltam para exploradores, mas em menor escala é justamente aí que o jogo falha. Ao mesmo tempo que o level design em ambientes externos é fenomenal e facilita a localização do jogador, em espaços fechados tudo se torna confuso e cansativo. O melhor exemplo disso é o Templo de Týr e as Minas Volunder, em que a jogabilidade, antes tão intuitiva, abre espaço para puzzles e enigmas desnecessariamente complexos comparados com o que foi estabelecido antes ao longo do gameplay.
De todo modo, a experiência continua excelente do começo ao fim da história principal. O recomeço de God of War conta uma das narrativas mais intimistas de um jogo AAA sem desrespeitar o que veio antes na franquia. O game dirigido por Cory Barlog sem dúvidas entra no hall de melhores jogos cinematográficos, junto com The Last of Us, Uncharted e The Walking Dead (Telltale Games).
A obra equilibra uma gameplay violenta e brutal junto com personagens que tentam de tudo para se afastar da própria sensibilidade. Ao longo de diversos altos e baixos na própria relação, Kratos e Atreus aprendem mais sobre o mundo nórdico e principalmente sobre si mesmos. O que torna God of War uma obra-prima é que ele faz o mesmo com o jogador, que sai entendendo que até mesmo deuses tão poderosos e antigos podem sentir, mesmo que lá no fundo, sensações como medo, insegurança e uma vontade tremenda de darem e receberem algum amor.