A Semana de Arte Moderna terminou ontem, mas as perguntas que o movimento cultural brasileiro deixou são para mais de 100 anos
Raquel Dutra
18 de fevereiro de 1922. As cortinas do salão de concertos já se fecharam, as luzes do saguão de exposições já se apagaram, e as portas do Theatro Municipal de São Paulo já se trancaram. Lá fora, pelas ruas da cidade, corre uma promessa de novos ares, criada pelos artistas que estiveram reunidos durante os últimos cinco dias no centro cultural mais tradicional da capital paulista. A ideia é transformar a Arte nacional através do que existe no nosso próprio país, buscando, assim, uma expressão artística 100% brasileira. “Genial e revolucionário!” exclama quem cruza com essa energia pelo caminho, porque ali, alguém testemunhou o início do modernismo no Brasil. É o primeiro dia pós-Semana de Arte Moderna, e sua força tem o potencial de influenciar todo o resto do país a procurar pelas suas raízes e colocá-las para fora, sem depender nunca mais de referências externas. Pelo menos, é o que eles dizem.
Mas no decorrer dos 100 anos que sucederam o momento em que a chamada primeira geração modernista se reuniu para repensar a Arte brasileira, os eventos daquela semana se mostraram cada vez mais complexos. Desde excluir colaborações precursoras fora do centro artístico de São Paulo até a inconsistência do idealismo de seus próprios realizadores e os caminhos duvidosos das reivindicações, a Semana de 1922 é objeto de uma disputa narrativa que, talvez na única de suas intenções integralmente contemplada, acompanha a História do Brasil no último século. O assunto do fim daquele primeiro dia em que a Arte brasileira assumia um compromisso definitivo com o contexto histórico-social-cultural do país se estenderia pelo próximo centenário, a fim de refletir sobre as origens e efeitos do movimento, e o que ele diz sobre a identidade brasileira. E como pediu Manuel Bandeira, estamos em 18 de fevereiro de 2022.
Era uma vez
O mundo
Hoje, ao olhar para trás, o principal aspecto de 1922 é identificável no país desde o final do século XIX. Curiosamente contradizendo a premissa central do movimento, foi por influência internacional que a cultura brasileira começou a se modernizar, através do desenvolvimento das tecnologias de comunicação e da expansão e reivindicação do Rádio, do Cinema, da TV e da Música no Brasil do início dos anos 1900. Preenchendo estes meios, existiam artistas e comunicadores que já refletiam sobre a identidade brasileira em um cenário de efervescência cultural nos primeiros anos do século XX. A atuação dos nomes ligados a essa modernidade originária, no entanto, era de e para as classes populares, expressões que não estavam presentes no horizonte visionário da alta sociedade artística paulista.
A condição era a mesma no contexto da expressão mais presente na Semana de Arte Moderna. Enquanto a Literatura de 1922 buscava suceder o academicismo do Parnasianismo em críticas pungentes aos padrões literários do movimento, os nomes de precursores como Lima Barreto não estavam assinando as palavras proclamadas no Theatro Municipal. O autor carioca veio a falecer em novembro daquele ano, depois de ser totalmente excluído de uma importante atuação que poderia ter acontecido junto da primeira geração modernista, especialmente enquanto autor negro pioneiro nas linguagens e expressões propagadas no evento.
Os sons que ecoavam entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922 também poderiam ter ido além, de forma ainda mais radical do que inovação da Música Modernista, compreendendo a revolução que o samba fazia na região sudeste do país naquele momento. Mas não, Noel Rosa e sua música popular em expansão, mesmo já vista como um potente aspecto de definição da identidade nacional, próximo do centro artístico de São Paulo e protagonizando um movimento 100% brasileiro que rejeitava influências internacionais, não teve um horário para chamar de seu no palco do Theatro, entre as belíssimas apresentações de Villa-Lobos e Guiomar Novaes.
O “heroísmo paulista” que comprometeu o alcance e representação da Semana se relaciona com o mito do modernismo no Brasil. Também iniciada alguns anos antes de 1922 mas tão difícil de definir quanto a origem do movimento, estudos sobre o tema apontam a probabilidade de que as ideias desenvolvidas no evento tenham surgido, primeiramente, de Mário de Andrade. Alguns anos antes de integrar a organização da Semana de Arte Moderna, o escritor, musicólogo, fotógrafo, crítico e historiador já fantasiava protagonizar o início de um movimento artístico disruptivo no país. É possível identificar as tendências modernistas de Mário de Andrade desde 1919, na época em seus vinte e poucos anos e trabalhando em seus primeiros livros sobre arte colonial, que iam em direção a uma busca pela identidade nacional.
A ideia ganha força especial em 1922 quando junto do centenário que era comemorado 100 anos atrás: a independência do Brasil em relação a Portugal. As festividades, no entanto, tinham um retrogosto incômodo para os grupos culturais: a Arte e a Cultura brasileiras ainda tinham “cara de Europa” mesmo 100 anos depois de 1822 – nos centros de classe mais alta, já que as camadas populares buscavam romper com os padrões internacionais desde o início dos anos 1900. Junto ao contexto mundial pós-Primeira Guerra, a sensação daqueles artistas, em constante contato com os ambientes internacionais, era a de que o Brasil estava atrasado. O momento era de profunda reflexão sobre o passado, presente e futuro do país, e assim a Arte procurou vivê-lo.
Foi então que Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, a cúpula modernista responsável pela Semana, embarcaram num contraditório projeto de “redescoberta do Brasil” em 1924, junto do poeta francês Blaise Cendrars. Inicialmente de tom irônico planejado por Oswald, a nova empreitada dos paulistas procurava se aprofundar na questão da identidade nacional – isto é, a cultura indígena e a afro-brasileira. De lá, o trio – que virava o Grupo dos Cinco quando junto de Anita Malfatti e Menotti Del Picchia – retornou com suas novas perspectivas, convertidas numa arte mais antropológica e etnográfica, longe de ser verdadeiramente representativa. O principal, no entanto, era a diferença entre os caminhos que cada um deles tomaria nos anos seguintes ao perseguir a raiz do modernismo.
De volta à São Paulo, a inconsistência dos modernistas foi evidenciada: Anita Malfatti não estava mais no país, enquanto Tarsila do Amaral, Oswald e Mário de Andrade assumiram uma postura primitivista nas artes brasileiras, através do Movimento Pau-Brasil e a famosa Antropofagia, num rumo que dali alguns anos os levariam até o Partido Comunista Brasileiro. Do outro lado, Menotti Del Picchia se atraía pelo fascismo, empenhado no Movimento Verde-Amarelo – soa familiar? – junto da Escola da Anta e Plínio Salgado, o fundador do integralismo brasileiro e principal nome da extrema-direita no país na época.
Era uma ebulição político-econômica-social que imperava no Brasil de 100 anos atrás. Por todos os lados e em todas as narrativas, a famigerada identidade nacional era perseguida e a promissora Arte Moderna era usada: nos anos 30, com foco para a Revolução Constitucionalista, o evento servia para construir a imagem de São Paulo como o motor do país; em 1945, no Estado Novo, a política era baseada na busca pela “brasilidade”; já entre 1950 e 1960, o nacional-desenvolvimentismo invocava o imaginário popular para o Brasil como o país do futuro; e nos anos 70, a Ditadura fez as vezes, retrabalhando a cultura para o seu interesse e desaguando no infame “Brasil: ame-o ou deixe-o”.
Nenhum Brasil existe
Por mais complexo que seja, esse contexto não pede muito de nós, em 2022, para compreender o porquê de ter ideais nacionalistas como inspiração de classes dominantes inflamadas poderia resultar em eventos ainda mais complexos. Em 1942, então, o próprio Mário de Andrade já compreendia a autocrítica necessária para os modernistas de 1922, realizando-as na conferência em comemoração aos 20 anos da Semana, onde o autor leu o artigo O Movimento Modernista.
Assim, quando a próxima geração do Modernismo brasileiro surgiu, a confusão não era mais a mesma. A Política seguia as ondas da Semana de 22, mas a Arte respirava para além do estado de São Paulo. Com a liberdade de deixar-se influenciar mais pelo que o movimento significou nos outros países, a presença de artistas como Carlos Drummond de Andrade chegou ainda questionando os padrões vigentes, mas sem a energia combativa de seus antecessores.
A identidade nacional? Jamais se desvinculou do que existiu sob o título de modernista e brasileiro. Logo em seu segundo livro de poesias (Brejo das Almas, de 1934), o poeta de sete faces adota a perturbação de seus contemporâneos ao mesmo tempo em que vai na direção oposta à de seus antecessores. Em Hino Nacional, o modernista reconhece o tamanho de suas palavras e o tamanho da questão que sua geração artística encarava:
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Então, quando a terceira geração chegou em 1945, parecia que o verdadeiro Modernismo brasileiro havia sido finalmente encontrado. Entre Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles e Ariano Suassuna, o artista brasileiro sentia-se livre da obsessão pela inalcançável identidade nacional uniforme e homogênea. Com um espaço cada vez maior para as individualidades que formam um país como o nosso, o movimento alcançava dimensões mais amplas das contempladas em 1922. A Arte era representante de si mesma, e em cada uma dessas representações, contemplava o ser no Brasil.
O Brasil é uma República Federativa cheia de árvores e gente dizendo adeus
Mas 100 anos depois, vivendo no pós-modernismo, é preciso dizer também que nem tudo de 1922 estava errado. Quando Heitor Villa-Lobos saiu por aí mesclando o folclore do nosso país às músicas clássicas mais respeitadas do mundo para compor suas Bachianas Brasileiras, ele parecia saber que um século depois uma Juçara Marçal estaria analisando o samba de seu berço fundador, Estácio de Sá, lado a lado com a origem do blues no Delta Mississippi.
Já Oswald de Andrade, logo depois do frisson da Semana de Arte Moderna, diagnosticou cirurgicamente um Brasil machucado nas primeiras páginas de Serafim Ponte Grande, livro que só seria lançado em 1933. Disruptivo com a febre nacionalista e um tanto amargurado diante da efusividade de seus colegas, ele entendeu que o nosso país era marcado pela limitação de autonomia e inconstância de futuro, numa obra de alta inventividade, rebeldia, reflexão e inspiração, exatamente assim como uma jovem Aline Bei faz no século XXI em Pequena coreografia do adeus.
Onde quer que olhemos, os artistas brasileiros são influenciados pela busca da nossa identidade. E o ato de entender um Brasil como o nosso só pode realmente ser uma Arte. 100 anos depois, num cenário tão politicamente crítico, culturalmente caótico e socialmente desamparado quanto o que inspirou as movimentações de 1922, a questão ainda é presente em cada artista que tenta registrar, interpretar, analisar e/ou criticar a nossa realidade. Não há padrão para mais nada e não há tempo para fazer qualquer coisa que não diga respeito à nossa própria identidade. Ao mesmo tempo, nunca estivemos tão distantes de qualquer definição cultural. E tem algo mais modernista e brasileiro do que isso? Existindo nós ou não, em 18 de fevereiro de 2122, nós vamos saber.