Nilo Vieira
Polly Jean Harvey já havia experimentado sucesso considerável com Dry (1992). O poder de seu disco de estreia lhe rendeu espaço no Reading Festival naquele ano, além de aclamação crítica. O simbolismo erótico das letras dialogava de forma sublime com o instrumental cru, união da melancolia do blues e a urgência do punk. O rock sempre esteve relacionado com sexo, e PJ Harvey inseriu o ponto de vista feminino em linguagens (verbais, sonoras e corporais) cirúrgicas para a geração alternativa dos anos 90.
Mas foi em seu segundo LP, Rid of Me (1993), que tal visceralidade chegou no ápice. Em tese, não deveria soar tão diferente do antecessor. A formação da banda era a mesma (PJ na guitarra e vocal, Steve Vaughan no baixo e Rob Ellis na bateria), assim como a gama musical. O único componente novo era o produtor Steve Albini, famoso por suas gravações rústicas – que priorizavam a reverberação natural do estúdio, sem edições ou overdubs em excesso. Seu trabalho no álbum permanece polêmico até o presente: além dos elogios, a crítica de que a masterização é muito baixa segue constante.
Tal aspecto, ainda que involuntariamente, denuncia a natureza conflitante de Rid of Me. O primeiro lançamento de Harvey por um selo major, a Island, era uma experiência confessional que exigia o volume máximo. E não era algo fácil de encarar. Logo na abertura com a faixa-título, a tensão sexual se faz explícita. O verso “eu te imploro, querido/ não me deixe/ estou sofrendo” pode sugerir fragilidade, mas se revela um artifício pontual para realçar o sadismo possessivo da narrativa – o eu lírico feminino possui pleno controle da situação e brinca com isso. O icônico grito “LAMBA MINHAS PERNAS, ESTOU EM CHAMAS!” de Ellis divide espaço com Polly entoando “você vai desejar nunca tê-la conhecido”, em um clímax tão orgásmico quanto perturbador.
Em comparação a Dry, o simbolismo é utilizado em dose menor. Em “Snake”, o mito bíblico da criação é recontado sob perspectiva violenta; a serpente não seduz Eva, e sim a força a provar o fruto proibido. De modo similar, “Me-Jane” converte a fábula de Tarzan e Jane em um relato realista: “todo o tempo você está caçando, pescando, nadando/ você não pode parar e me dar tempo para respirar?”.“50ft Queenie” evoca a figura da rainha, constante no álbum, em sua forma mais imponente. Categórica, PJ afirma que “ninguém pode me tocar”.
O feminismo se faz presente sem seguir agendas. Harvey canta sem pudor, e sua libido aflora tanto pelo prazer carnal (“Dry”) como pela consciência de sua própria força enquanto mulher. “Eu poderia estar morta/ Mas posso matá-lo ao invés disso“, finaliza “Legs”. O chamado à ação se dá de forma prática e direta, com uma voz que se impõe em várias nuances: a ironia de “Man-Size” não é a mesma de “Rub ‘Til It Bleeds”.
Interessante reparar que facetas diferentes são amarradas pelo mesmo fundo musical. Com exceção de “Man-Size Sextet”, que conta com arranjo de cordas, o que prevalece é a fúria destilada nos alicerces básicos do rock ‘n’ roll. Até “Highway ’61 Revisited”, clássico de Bob Dylan, se transforma em uma pedrada aos moldes do Pixies – versos estáveis que explodem no refrão. Como se Harvey quisesse mostrar que, independente de qual personagem incorporasse, a fúria em seu íntimo permanecia. O slide guitarrístico na finalíssima “Ecstasy” é praticamente o único respiro de Rid of Me, e até nesta camada etérea a eletricidade é pulsante. O aceno do trio ao mainstream era um soco na cara, afinal.
A imagem que estampa o disco foi feita no banheiro da fotógrafa Maria Mochnacz. O local era tão escuro que a única luz foi mesmo o flash da câmera, centralizado quase de modo invasivo na face de Polly. Apesar da gravadora ter sugerido edição ao fundo, Mochnacz foi contra: qual seria o sentido em retirar as imperfeições de um álbum que prezava justamente por exteriorizá-las? No fim, os azulejos, a plantinha e a sujeira na parede não só ficaram, como a versão em vinil (hoje uma raridade) trouxe uma visão mais ampla do cenário. Há também um promo em K7 com capa diferente, como se fosse um ângulo diferente da mesma fotografia. Difícil pensar em adaptação tão precisa do artifício imagético em diferentes formatos usando de tão pouco.
Mochnacz se tornaria a parceira mais duradoura de PJ Harvey, que então se assumiu como artista solo e passou a flertar com estilos como o trip hop e folk. Vinte e cinco anos depois, pouco sobrou da sujeira do segundo álbum: assim como sua amiga Björk, a musicista britânica amadureceu e construiu uma das carreiras mais diversificadas e influentes da música pop. Renovando sua rebeldia ao longo do anos, não só atingiu maior público como garantiu que cada faceta sua permanecesse como genuína.
Hoje, é difícil cravar Rid of Me como o melhor disco de PJ Harvey. Fácil, porém, reconhecer que permanece um pico de intensidade que ninguém conseguiu repetir. Após ser contratado pelo Nirvana para produzir o que se tornaria In Utero (1993), Steve Albini enviou uma cópia deste LP como exemplo de poder de fogo. A influência de Polly seguiu firme mesmo após a morte de Kurt Cobain: ela foi convidada por Dave Grohl para uma espécie de performance de reunião do trio nesta década. Até a maior banda dos anos de 90 reconhece a majestade da real rainha da Inglaterra.
Grande artista. Admiro muito.
baita resenha!
fantástico! parabéns!