Woody Guthrie: da poeira ao povo

O caubói de Oklahoma

Gabriel Rodrigues de Mello

Um som quebrava o ruído das máquinas no hospital. De um quarto pequeno, soava um violão. “We come with the dust and we go with the wind” (‘viemos com o pó e vamos com o vento’), Arlo Guthrie cantava para o seu pai, Woody; este que reagia com um olhar cansado, mas com um sorriso discreto.

O trecho da música alude às tempestades de areia que assolavam as Grandes Planícies dos EUA, na década de 30.  Nessa época, Woody Guthrie não vira nenhuma alternativa, a não ser deixar sua esposa Mary e filhos no Texas e migrar para a Califórnia, em busca de emprego. Apesar de possuir um repertório de músicas tradicionais e baladas, o jovem de 20 e poucos anos encontrou inspiração para compor suas próprias canções nos olhares cansados dos imigrantes a seu lado.

O que destaca a obra de Woody dos seus contemporâneos é o foco na esperança e não no sofrimento. Ele trazia os componentes do dia a dia explorados pela Carter Family e a aflição cantada por Leadbelly. Transitando entre os dois, criava cenários otimistas, fundados na paisagem americana.

Tempestade de poeira típica do centro-oeste americano durante a Grande Depressão.

Já em Los Angeles, eventualmente conseguiu um emprego em uma rádio chamada KFVD cantando músicas tradicionais. Apoiado por grande parte dos imigrantes de Oklahoma, ele foi inserindo na programação, lentamente, suas primeiras composições, que denunciavam a xenofobia sofrida pelos seus conterrâneos.

Ganhando fama com seu ativismo, foi se aproximando dos grupos de esquerda da cidade. Muito se diz, atualmente, sobre a tendência política de sua música, no entanto, Guthrie era essencialmente individualista. Ele apoiava os sindicatos e greves trabalhistas, porém rejeitava se encaixar em qualquer doutrina específica. Sua filha, Nora Guthrie, também explicou em entrevista para o The Guardian que seu pai “queria estar envolvido com o governo para mudar coisas, e não derrubá-lo.”.

No livro biográfico de Ed Cray, Ramblin’ Man: The Life and Times of Woody Guthrie, é explicado que Woody nunca foi um membro do partido comunista, porque “ele sempre foi considerado excêntrico demais pela organização”; sendo intitulado como um companheiro viajante.

Apesar de seu desprendimento, o músico se interessou o suficiente para escrever para o jornal comunista People’s World. Sua coluna, que era chamada de Woody Sez (‘Woody Diz’), apareceu 174 vezes desde maio de 1939 até o início do ano seguinte. Seus textos não eram explicitamente politizados, mas retratavam eventos de seu cotidiano e sua visão sobre alguns acontecimentos nacionais. Propositalmente composto por um vocabulário caipira, a coluna também era acompanhada por ilustrações feitas por ele.

A primeira edição de Woody Sez.

Woody estava fazendo dinheiro suficiente para mandar para sua família – ainda no Texas; porém, com a Segunda Guerra Mundial surgindo no outro lado do mundo e a união entre a Alemanha e a URSS através do Pacto de Não Agressão, houve uma súbita desaprovação aos ideais comunistas. Consequentemente, o músico teve que sair da rádio e voltou à sua família.

Agora, no entanto, Woody Guthrie havia sido mudado pelas suas viagens. O modo de vida tradicional e inerte não o agradava mais; ele sentia falta das estradas e das pessoas. Sua estadia de poucos meses acabou quando foi convidado por Will Geer a visitar Nova Iorque.

Nesse momento, o “caubói de Oklahoma” entraria em contato, efetivamente, com a cena musical da época. Nomes como Pete Seeger, Sonny Terry e Cisco Houston rapidamente acolheram sua música de protesto. Talvez o seu encontro mais importante tenha sido com Alan Lomax, o famoso folclorista, que gravaria horas e horas de suas conversas e canções para a Biblioteca do Congresso.

Também seria com a ajuda de Lomax que Woody gravaria seu primeiro álbum: o conceitual Dust Bowl Ballads. Praticamente autobiográfico, o disco reunia 14 músicas autorais, incluindo “Pretty Boy Floyd” e “Do Re Mi”, uns dos seus maiores sucessos.

Em Nova Iorque, Woody encontrou na jovem dançarina Marjorie Mazia um motivo para se aquietar. Além de resultar em quatro filhos (Cathy, Arlo, Joady e Nora), o relacionamento proporcionou um dos períodos mais prolíficos de sua carreira. Foi nessa época, em 1943, que publicou sua autobiografia Bound for Glory, e que compôs sua canção mais famosa: “This Land is Your Land”.

Considerada por muitos como o hino não oficial dos EUA, a música foi uma resposta sarcástica a “God Bless America”, de Kate Smith – que dominava as rádios nos anos 30. Acompanhando a melodia “emprestada” de “When the World’s on Fire”, da Carter Family, a letra representava perfeitamente o estilo de Guthrie. Finalizando cada estrofe entregando a terra ao povo, Woody usava cada verso para pincelar cenários familiares a qualquer americano.

O icônico violão com as palavras: Essa máquina mata fascistas.

Enquanto Woody estava usufruindo do avanço de sua carreira, os EUA estavam entrando efetivamente na Segunda Guerra. Com 30 anos, ódio ao fascismo e já divorciado da primeira esposa, ele era o soldado ideal. Seu pedido de se juntar a United Service Organization – como animador das tropas – foi recusado, por isso se juntou a marinha, seguindo conselhos de seu parceiro de música Cisco Houston.

Durante seu período a bordo, trabalhou como cozinheiro, servindo soldados e limpando mesas. Frequentemente, cantava para levantar a moral dos tripulantes. Além disso, sua inspiração resistiu à guerra, e o seu tempo navegando rendeu várias músicas apoiando a marinha e condenando os seus inimigos. Uma delas é “The Sinking of Reuben James”, que trata sobre a destruição de um dos primeiros navios de guerra americanos durante a Segunda Guerra.

Após o final da guerra, Woody casou com Marjorie e dedicou grande parte de seu tempo à vida familiar. Seu repertório refletiu isso ao se estender para músicas infantis e didáticas; explorando temas como a vida em comunidade, amizade, responsabilidades etc.

Ao final da década de 1940, Woody começou a apresentar um comportamento estranho. Sua família percebeu que estava se tornando mais violento e que seu consumo de bebidas alcoólicas aumentou. Novamente, seu impulso escapista de viajar se estabeleceu. Reconhecendo a sua atitude nociva à sua família, deixou Nova Iorque e voltou para a Califórnia novamente. Dessa vez, acompanhado pelo seu fiel seguidor, Ramblin’ Jack Elliott.

Em 1952, foi diagnosticado com a Doença de Huntington. Pelo transtorno herdado de sua mãe, a saúde mental e física de Guthrie foi se deteriorando com o tempo. Eventualmente, se divorciou de Marjorie e casou com a californiana Anneke Van Kirk, que seria sua terceira e última esposa. Aos seus 40 anos, suas funções motoras se reduziram ao ponto de não poder mais tocar violão; e, em 1956, foi hospitalizado no Brooklyn State Hospital.

Woody com 46 anos, em 1958

Os anos que se passaram foram difíceis. Para um homem que não conseguia ficar longe das estradas, ficar deitado em uma cama de hospital foi árduo. Seus dias eram solitários, a não ser pelas visitas de sua família do segundo casamento, que liam todas as cartas de fãs desejando melhoras.

Uma visita em especial foi de um jovem de Minnesota. Descaradamente copiando seu estilo, Bob Dylan encontrou seu ídolo em 1961. Dylan representava a nova onda de músicos folk que tomou Nova Iorque, em especial, o bairro Grenwich Village.

Conhecido como o American Folk Revival (‘Renascimento do Folk’), o movimento artístico – que se iniciara durante os anos 40 – havia atingido seu pico no início da década de 60. Reunindo jovens músicos do país que se interessavam pela música americana tradicional, o movimento atraiu um fluxo desse nicho para os bares de Nova Iorque.

Dylan, Dave Van Ronk, Joan Baez, Odetta eram alguns dos principais pilares componentes do centro desse campo artístico, que – inspirados pela geração de Woody – trouxeram os moldes antigos do gênero musical para conflitar com os desejos de rebeldia política da época.

Woody Guthrie viveu o suficiente para perceber que, ao menos em partes, contribuiu para o desenvolvimento da música como ferramenta de mudança; seja ela usada em âmbito social, político ou pessoal. Ele reconheceu isso enquanto ouvia seu filho, Arlo, tocar uma de suas músicas ao lado de sua cama no hospital; percebeu isso 50 anos atrás, quando faleceu no outono seguinte do verão do amor de 1967.

“E não há um verdadeiro truque para criar palavras para a letra de uma música, uma vez que você percebe que a palavra é a música e as pessoas são as canções.”

Deixe uma resposta