O primeiro álbum do Pavement, ainda então um trio, comemora 25 anos. O ponto fora da curva da discografia, Slanted and Enchanted é também o disco mais marcante da banda
Lucas Marques dos Santos
Neste começo de 2017 relembramos dois importantes lançamentos do Pavement, uma das bandas responsáveis pela identidade do indie rock dos anos 90. Se as composições de Brighten the Corners, de 1997, partilham do ar desleixado e melódico de jam sessions que é a marca registrada da banda, a estreia dos californianos em 1992, Slanted and Enchanted, é um ponto estranho em uma discografia tão uniforme. Além das claras diferenças sonoras – canções com guitarras mais barulhentas e estruturas sólidas –, temos, principalmente, uma diferença em atitude: Slanted and Enchanted é a declaração mais firme e enérgica do Pavement.
O disco traz o que de melhor uma obra debutante de rock pode nos oferecer: a energia crua, sem receio de mostrar as impurezas. Não à toa Stephen Malkmus, vocalista, guitarrista e letrista (e, consequentemente, a peça central da banda) sempre preferiu gastar pouco tempo em estúdio em uma única obra. Dando continuidade aos mestres Neil Young e Velvet Underground, o Pavement sempre preferiu a emoção sobre a acuidade técnica. Em entrevista à revista QG , Malkmus discorre sobre a força do primeiro disco:
“Com um álbum como Slanted and Enchanted, era muito uma questão de timing, junto ao fato que seus erros são grande parte do que o faz bom. Não é como um disco do Radiohead, no qual é inteiro bom. Nossos discos não são bons dessa maneira. Nossos discos são mais atitude e estilo, mais ou menos de um jeito punk. Nós somos bons da mesma forma que os Strokes são bons. Eu acho que Slanted and Echanted é provavelmente o melhor álbum que fizemos, só porque ele é menos autoconsciente e tem uma energia irrepetível.”
Apesar da estreia em LP só se dar em 1992, o então trio de Stockton, do estado estadunidense da Califórnia, havia criado antecipação nos entusiastas de rock alternativo com o lançamento de três EPs: Slay Tracks (1933-1969), Demolition Plot J-7, e Perfect Sound Forever. Formada originalmente por Stephen Malkmus e o guitarrista Scott Kannberg – creditados nos primeiros trabalhos como “SM” e “Spiral Stairs” -, o Pavement teve a adição nos EPs do produtor e baterista Gary Young, uma figura excêntrica, para o lado positivo e negativo: um ex-hippie, espécie de lenda da cena local com seus 35 anos, impressionado pelas composições da dupla. Malkmus também ganhara reconhecimento nesses anos por trabalhar com o poeta nova-iorquino David Berman no projeto Silver Jews.
Antes do lançamento, versões preliminares em fitas cassetes de Slanted já circulavam na mão de entusiastas, lojas de discos e universitários – Malkmus cursou história na Universidade de Virgínia e era um DJ de rádio universitária de certo prestígio. O álbum foi gravado em duas sessões: uma datada de 1990, no Youth Makepeace Studios, em Nova York (do qual só restou “Here” na versão final) e outra de 1991, nos estúdios Louder Than You Think, em Stockton. Com a explosão de Nevermind, do Nirvana, não havia momento melhor (e talvez nunca haverá) para lançar discos como Slanted, que, mesmo não chegando ao grande público, rapidamente eram aclamados pela crítica e objetos de culto. O disco impulsionou a ainda jovem gravadora Matador Records para se tornar referência do indie rock.
A primeira música do disco, Summer Babe (Winter Version), dá o tom do que aparece ao longo das curtas 14 faixas: guitarras sem controle no melhor estilo Neil Young, o vocal cuidadosamente apático (com direito a travadas e uma explosão desafinada), seções que conduzem a um final catártico e uma letra pegajosa, embora abstrata.
Por esses motivos, Slanted and Enchanted foi acusado de plagiar a sonoridade da banda inglesa The Fall, pioneiros do pós-punk. De fato, a sisudez das guitarras de Spiral Stairs e as partes mais industriais do disco lembram bastante The Fall, além de que os membros do Pavement não esconderem a influência. Entretanto a criatividade das canções assemelham-se, em essência, a Can e Replecements, grupos que, mesmo de gêneros diferentes, prezam mais por explorar melodias do que lançar conceitos sólidos. Como Doolittle, dos Pixies, e Bee Thousand, do Guided by Voices, as curtas canções são algumas das coisas mais engenhosas feitas com a mentalidade e energia punk.
Apesar de ter a identidade mais marcante dos álbuns do Pavement, é difícil encontrar uma temática que una as faixas de Slanted. De certo, há mais de um comentário sobre capitalismo e a vida de jovens adultos, mas as letras são guiadas principalmente por como elas soam na música. Em entrevista para o site Rumpus, Malkmus diz que sua “coisa favorita é se quando ouço palavras e fecho meus olhos e as conotações ou as imagens que aparecem na cabeça combinam com a sonoridade delas – algumas vezes fonética. Eu estou apenas amarrando-as.”
Pode-se dizem que ambos Malkmus e Spiral Stars eram hipsters antes de ser cool: ostentavam a pose blasé com ironia, inclusive nas roupas normais demais para um punk ou rockstar; misturavam interesses eruditos e populares, como música experimental e esportes. As letras reverberam em especial o gosto de Malkmus por literatura, das imagens fortes de Alan Poe e dos quebra-cabeças modernistas de T.S. Eliot. Assim como um livro de Kafka, em uma linha você consegue se conectar com a mensagem apenas para na próxima frase cair no absurdo, impossível de ser compreendido totalmente, mas irresistível o bastante para não tentar.
Stephen Malkmus e Bob Nastanovich junto com o poeta David Berman, sob a alcunha de Silver Jews, lançaram ótimos álbuns na década 1990. É de um cartoon de Berman a autoria da frase “Slanted and Enchanted”
Em In The Mouth a Dessert, uma das músicas mais aclamadas do disco, Malkmus começa cantando “Can you Treat it Like a Oil Well/When it’s underground, out of sight” (você tratar isso como um poço de petróleo/ quando está no subterrâneo, fora de visão”) e culmina gritando perto do final “I’ve been crowned the King of Id” (“eu fui coroado o Rei da Id”). Nada tem um sentido claro, mas mesmo assim os versos expressam sensações e imagens únicas. Há também o senso de humor presente em boa parte da carreira do Pavement: Malkmus está muito mais para Rei do Ego; ele se proclama Rei da Id depois da ingestão de drogas psicodélicas.
A variedade das canções é outro componente importante de Slanted. Na quinta faixa, Conduit for Sale!, Malkmus narra um conto abstrato sobre o capitalismo como se estivesse discursando – o chamado spoken word. Na faixa seguinte, “Zurich is Stained”, a banda abdica dos feedbacks de guitarra, antes onipresentes. Em Two States Spiral Stairs assume as letras e o vocal, brincando sobre a rivalidade do sul e do norte da califórnia.
Entretanto os versos que, retirado sem contextualização, definem a banda em Slanted são os primeiros de Here: “I was dressed for sucess/But sucess it never comes” (eu estava vestido para o sucesso/mas o sucesso nunca vem”). O famoso crítico Robert Christigau considerou o Pavement como a melhor banda de rock dos anos 90, mas deixou claro que “eles nunca vão se vender verdadeiramente se não fizerem aulas de canto”. De fato, em alguns momentos futuros a banda flertou com o mainstream – o mesmo que veria uma onda indie anos depois com os Strokes -, mas os californianos mantiveram até o final a imagem de garotos estranhos e preguiçosos. “É como se eles nem mesmo estivessem tentando”, concluem os cartoons Beavis e Butthead ao assistir ao clipe de Rattled by The Rush.
Por motivos de decência não foi incluído no corpo do texto “eles são tão preguiçosos que provavelmente cagam na banheira”
No final de 1992, o Pavement também lançou o ótimo EP Watery Domestic e teve a adição do percussionista Bob Nastanovich e do baixista Mark Ibold, respectivamente amigo de juventude de Malkmus e fã antigo da banda. Em 1993 a relação de Gary Young com os outros integrantes se tornou ainda mais conturbada, sendo substituído pelo relaxado – em comportamento e estilo musical – Steve West. Juntos lançariam 4 discos que definem o indie rock dos anos 90. A influência na geração de sucesso comercial do indie na década de 2000 é latente – compare Juicebox, dos Strokes com Flux=Rad e veja.
Slanted and Enchanted cai na curiosa classificação de álbuns que, em uma discografia, são inegavelmente os mais importantes, embora não necessariamente os favoritos pessoais. Talvez porque a estreia do Pavement é carregada de declarações enérgicas, enquanto o restante dos discos soam como agradáveis conversas desinteressadas entre amigos. Ambas interações mudam vidas, mas o que fica na memória é a intensidade.
Um comentário em “Slanted and Enchanted: a estreia energética da banda definitiva do indie rock”