Miles Ahead: muito pouco sobre o Dark Magus do jazz.

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Eli Vagner F. Rodrigues

Miles Ahead não segue o modelo de “cinebiografia hagiográfica”, característica de algumas produções cinematográficas que retratam vidas de artistas. Tampouco segue o padrão histórico-cronológico, que sintetiza os momentos mais expressivos da carreira de um artista tendo como pano de fundo um panorama sociocultural. Essas produções geralmente se baseiam em um retrato das dificuldades que o artista enfrentou até chegar ao estrelato, ressaltando as condições desfavoráveis de sua origem em contraste com o poder transformador de seu talento.

Mutatis mutandi, essa é a estrutura de obras como “Ray” (2004), cinebiografia de Ray Charles dirigida por Taylor Hackford, Bird – Charlie Parker (1988), com direção de Clint Eastwood, Lady Sing The Blues -Billie Holiday (1972), assinada por David Furie e até mesmo do curioso filme de Woody Allen, “Sweet and Slow Down” (1999), sobre a vida de Django Reinhard, o gênio do “Jazz Manouche” (ou gypsy jazz) estrelado por Sean Penn.

O que pode ter levado o diretor Don Cheadle a desistir das duas opções mencionadas pode ter sido, em primeiro lugar, o fato de Miles Davis não ter tido exatamente uma “vida sofrida”, o que inviabilizaria o efeito de contraponto. Em segundo lugar, e talvez esse tenha sido o maior motivo, a consciência de que qualquer tentativa de retratar a história completa de Miles Davis significaria retratar, praticamente, toda a história do jazz, pelo menos a partir da segunda metade dos anos 40 até 1991.

Sobre o aspecto social, pode-se objetar, com toda razão, que qualquer afro-americano que viveu nos EUA nos últimos dois séculos sofreu com o preconceito racial. De fato, não foi diferente com Miles e o artista participou, à sua maneira, da luta contra o racismo nos EUA. Sem dúvida, sua obra também ficou marcada por questões raciais – alguns exemplos desse engajamento são os álbuns A Tribute to Jack Johnson (1971) e Tutu (1986). Esse ponto de vista, no entanto, daria origem a um ótimo filme de Spike Lee e não foi essa a inspiração de Don Cheadle.

É preciso notar, ainda, que Miles Davis sempre participou de maneira muito peculiar do movimento por direitos civis nos EUA. A maneira como reagia às inúmeras provocações, injustiças e violências que ocorreram ao longo de sua vida refletia aspectos pouco comuns de personalidade e afirmação. Não é equívoco afirmar que sua origem social, seu individualismo e até mesmo seu narcisismo foram fatores determinantes de um traço fundamental de sua reação ao racismo, que se caracterizava por uma postura de negação de um discurso vitimista.

miles ahead cartaz

Miles Davis não teve uma origem pobre, tampouco cresceu em um gueto de um grande centro urbano; isso certamente influenciou o modo como ele enfrentava tanto os conflitos sociais, como as instituições da indústria da música. O músico reagia, e não exatamente como um gentleman, quando tentavam tratá-lo como um negro oprimido pela pobreza e pelo preconceito. Filho de um dentista que também era proprietário de uma grande fazenda no Arkansas, cresceu em um bairro rico de St. Louis, teve acesso à educação e todo conforto de uma família de classe média. Seu nome era Miles Dewey Davis III. O efeito que os numerais ordinais acrescentados aos nomes próprios causam pode ser um artifício mas indicam, no mínimo, um ideal de linhagem e respeitabilidade. O próprio Cheadle gosta de lembrar: “Quando lhe perguntavam se tocava blues tão bem por ter conhecido a pobreza e a depressão, Miles costumava responder: ‘Quando era criança eu tinha um pônei. E você, tinha um pônei?”.

Tendo se iniciado no estudo do trompete com treze anos, aos dezesseis já tocava profissionalmente em St. Louis. Em 1944, substituiu Buddy Anderson como terceiro trompete no grupo de Billy Eckstine, no qual tocavam na época Dizzy Gillespie e Charlie Parker – e só não acompanhou a banda pela insistência de seus pais para que completasse os estudos. Com dezoito já estudava na prestigiosa Juilliard School em Nova York, considerada um dos principais conservatórios e escolas de dramaturgia do mundo. Uma vez em Nova York, seu caminho até os grandes músicos da cena jazzística local foi imediato. Miles procurou a banda de Charlie Parker e em 1945 já participava de gravações de jazz e blues. A partir desses primeiros momentos na metrópole, Miles Davis nunca mais deixaria de contribuir para a música americana.

Merecem destaques as seguintes fases:  o bebop e da gestação de Birth of the Cool – de 1944 a 1955, a formação do Primeiro Grande Quinteto e Sexteto, de 1955 a 1958 (John Coltrane – saxofone tenor, Red Garland – piano, Paul Chambers – contrabaixo e Philly Joe Jones – bateria). As gravações com Gil Evans – de 1957 a 1963 – e do seminal Kind of Blue – de 1959 a 1964 (Miles Davis – trompete, Julian “Cannonball” Adderley – saxofone alto, John Coltrane – saxofone tenor, Bill Evans – piano, Wynton Kelly – piano em “Freddie Freeloader”, Paul Chambers – contrabaixo, Jimmy Cobb – bateria). O segundo grande quinteto – de 1964 a 1968 (Wayne Shorter – saxofone, Herbie Hancock – piano, Ron Carter – baixo e Tony Williams – bateria). A fase elétrica – de 1968 a 1975 – com o “quinteto perdido” (Wayne Shorter, Chick Corea, Dave Holland e Jack DeJohnette, além de  John McLaughlin) e, por fim, a chamada década final – de 1981 a 1991, fase em que lançou You’re under arrest (1985) Tutu (1986), Music from Siesta (1987), Amandla e Aura (1989), Doo Bop (1992).

Diante de tantas possibilidades de reproduzir momentos fundamentais da história do jazz, a opção de Cheadle foi limitada e redutivista: o diretor escolheu por retratar somente dois dias conturbados da vida do trompetista. O filme tenta mostrar alguns traços de sua personalidade artística enfocando o período entre 1975 e 1980, fase em que o artista não produziu nenhum álbum de estúdio e se recolheu em sua casa sem agenda de shows, com problemas de saúde (uma osteoartrite que o levaria a várias operações) e envolvimento com álcool e drogas. Esse período também foi marcado por vários conflitos com a direção da gravadora Columbia.

A apropriação que as gravadoras faziam da obra dos artistas é retratado de maneira caricata por Cheadle. De fato, a indústria fonográfica abusava de jogadas de mercado, lançando coletâneas e materiais inéditos muitas vezes sem o consentimento ou supervisão dos artistas. Como afirma um diretor da gravadora no filme: uma vez que as gravações eram feitas sob contrato, o material artístico que se produzia passava a ser propriedade das gravadoras e não mais dos artistas. O tema perpassa todo o roteiro do longa-metragem; Miles faz investidas na sede da Columbia Records armado de um revólver e ajudado por um jornalista da Rolling Stone, interessado em uma entrevista, para reaver uma de suas preciosas gravações. Durante dois dias de confusões, brigas, tiroteios e consumo de cocaína, Miles sofre com sua doença degenerativa, recorda sua turbulenta relação com Frances Davis e tenta recuperar sua música.

A aposta de Cheadle nesse contexto passa pela ênfase em algo que sempre se espera de grandes artistas: a ideia de que, quando estão fora dos estúdios das grandes gravadoras, e muitas vezes em franco conflito com elas, continuam criando novas possibilidades para sua arte. Esta hipótese, mais do que válida, seria a própria salvação do filme, se a fase posterior a esse hiato tivesse sido realmente importante na carreira de Miles Davis.

É notório que o artista sempre surgiu com inovações e reinvenções musicais após hiatos criativos. Basta repetir a já desgastada fórmula usada para definir a carreira de Miles após sua morte para termos uma ideia de sua fecundidade: “Miles Davis foi o único músico que teve influência direta no surgimento de movimentos como o bebop, cool jazz, jazz orquestral, jazz modal, jazz-rock (fusion), jazz-funk, hip-hop.” Don Cheadle, no entanto, se debruçou sobre a época errada.

O período posterior aos seis anos de silêncio (75-80) não foi a melhor fase criativa de Miles. Nesse período ele lançou The Man with the Horn (1981) e You’re Under Arrest (1985), álbuns que não foram poupados pelos críticos e muito menos pelos músicos de jazz. Com o segundo, ataca com uma fase new wave, com bateria eletrônica programada, gravações de música pop e arranjos bastante distantes da linguagem do jazz clássico, opção que já se anunciava com Decoy (1984). Por razões óbvias, fizeram algum sucesso as versões de “Human Nature”, de Michael Jackson e de “Time After Time”, de Cyndi Lauper, no entanto, essa inserção no mundo da música pop, que para alguns representava criatividade, inovação, novos rumos, para outros soava como decadência e aderência aos apelos da Indústria da música que ele mesmo, à sua maneira, combatia.

Boa parte do público de jazz considerou os álbuns dos anos 80 verdadeiros insultos aos fãs. Wynton Marsallis, que nunca escondeu sua reverência pelo conjunto da obra de Miles, afirmou que o mesmo parecia um velho tentando parecer jovem. Miles imediatamente respondeu que “Wynton parecia um jovem tentando ser velho”, referindo-se à postura conservadora de Marsallis. A opção por um tradicionalismo no jazz distanciava francamente Wynton das opções de Davis além, é claro, de toda aquela diferença de figurino.

O que incomoda no filme de Cheadle é a ideia de que várias fases da carreira de Miles poderiam ser retratadas com maior impacto tanto sobre o público aficionado em Jazz como no grande público. As fases anteriores a Birth of the cool em 1957, o período anterior à gravação do Kind of Blue de 1959, ou mesmo o trecho anterior a 1970 quando eclodiu a fase do fusion com a gravação do lendário Bitches Brew e, ainda, as cartadas finais com e Tutu e Doo Bop, que contaram com as colaborações de Marcus Miller e Easy Mo Bee – qualquer um destes períodos ofereceriam ao diretor várias maneiras de explorar a experiência de reproduzir, no cinema, o impacto de grandes gravações do jazz.

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Em suma, Don Cheadle não opta pela batida mitificação heroica do artista salvo pelo talento, não enfatiza os aspectos sociais da vida de Miles com um pano de fundo histórico, (apesar de retratar o famoso episódio de racismo no Village Vanguard), não evidencia explicitamente sua importância para a história do jazz fase por fase. Essas escolhas parecem ter surgido da tentativa de se distanciar de clichês e fórmulas muito frequentes nas cinebiografias. Por outro lado, o diretor não faz a melhor escolha no que diz respeito à fase retratada e, mesmo tendo apostado em novas perspectivas em cinebiografia, Miles Ahead chega a ser frustrante em se tratando de uma obra sobre um artista do quilate de Miles Davis.

Felizmente, as cenas finais guardam um presente para o público de jazz. Don Cheadle encerra com “What’s Wrong with That” em uma celebração/tributo executada por ele próprio, Robert Glasper, Gary Clark, Jr., Herbie Hancock, Keyon Harrold, Antonio Sanchez, Esperanza Spalding e Wayne Shorter. A sensação final não poderia ser outra, é a reconfortante certeza de que a melhor forma de lembrar de Miles Davis é através de sua música, não de sua intimidade.

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