Por que buscamos a Memoria?

Cena do filme Memoria. A foto mostra Jessica, uma mulher branca, de cabelo ruivo-escuro, vestindo camisa clara e calça jeans.Ela está sentada em uma cama bagunçada, em um quarto com mobília e quadros antigos e paredes brancas. Uma luz branca forte emana da janela.
Memoria está sendo exibido na seção Perspectiva Internacional da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: MUBI)

João Batista Signorelli 

Todas as memórias são imperfeitas, incompletas, limitadas. Um som, um gesto, uma visão, tudo se dissolve passado o seu momento de existir, e sobrevivem apenas em uma reconstituição nebulosa registrada em nossa mente. Uma memória pode não traduzir com exatidão os eventos vivenciados por um indivíduo, o que não quer dizer em nenhuma hipótese que ela é sem significado. As lembranças representam ideias que, muitas vezes, não somos capazes de traduzir em linguagem, mas que, ainda assim, sentimos, e sentindo sabemos que aquilo é significativo. Do mesmo modo que uma memória paira em nossa mente, Memoria, exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é uma obra enigmática e impossível de ser descrita com precisão, mas que, talvez por isso mesmo, está repleta de significados. 

Adquirido pela MUBI em conjunto com a enorme lista de aquisições realizadas pelo streaming alternativo no Festival de Cannes, o filme de Apichatpong Weerasethakul dividiu o Prêmio do Júri com Ahed’s Knee. O diretor tailandês já é um nome recorrente do evento, tendo levado a Palma de Ouro em 2010 com Tio Boonmee que Pode Recordar de suas Vidas Passadas, recebido Prêmio do Júri em 2004 por Mal dos Trópicos, além de diversas vezes ter marcado presença nas mostras paralelas do festival. Mesmo com um diretor tailandês, tendo parte de seus diálogos em inglês, e sendo uma coprodução internacional entre Colômbia, Tailândia, França, Alemanha, México e Catar, o longa foi escolhido para representar a Colômbia na corrida pelo Oscar 2022 de Melhor Filme Internacional.

 Cena do filme Memoria. A foto mostra Jessica, uma mulher branca, de cabelo ruivo-escuro, com camisa azul e calça bege clara, diante de uma mesa cheia de ossos. Ela coloca o dedo indicador em um orifício de um dos ossos. Do outro lado da mesa, está uma mulher branca de jaleco branco de costas. Ao fundo, há uma estante cheia de livros e caixas.
É a quarta vez que Apichatpong Weerasethakul tem um filme seu exibido na Mostra (Foto: MUBI)

Jessica (interpretada por Tilda Swinton, que também produz o filme), uma mulher estrangeira residente na Colômbia, acorda de madrugada ao ouvir um som subitamente cortar o silêncio. É um baque alto, grave, surdo, metálico, profundo, e que desaparece tão rapidamente quanto surge. Intrigada, ela procura Hernán (Juan Pablo Urrego), um técnico de áudio, na tentativa de reconstituir o som. Em uma das cenas mais marcantes de Memoria, eles se encontram sentados em um estúdio, enquanto ela procura traduzir para a linguagem as características daquele som, através de adjetivos e comparações, enquanto acompanhamos passo a passo o processo de Hernán em editar e manipular o ruído, na tentativa de recriar o que permanecia existindo apenas na mente de Jessica.

Ao mesmo tempo que suas lembranças passam a confundir sutilmente o entendimento de Jessica da realidade, o som percebido no início se repete com maior frequência, a sua irmã (Agnes Brekke) enfrenta a recuperação de uma doença de origem ambígua, e o contato em uma universidade com os ossos de seres humanos primitivos a leva ao interior do país, onde mais ossos estão sendo encontrados. Lá, ela tem um encontro com um homem misterioso, que pode oferecer respostas (ou ainda mais perguntas) para as estranhas vivências pelas quais tem passado.

Cena do filme Memoria. A foto mostra Jessica, uma mulher branca, de cabelo ruivo-escuro, de costas diante de um espaço cercado por paredes de vidro. Dentro deste espaço plano, há terra e grama em pontos espalhados.
A produção está na Mostra apenas em sessões presenciais (Foto: MUBI)

Paciente e desafiadora, a montagem de Lee Chatametikool dá a cada uma de suas cenas o direito de existir longamente na tela, algo já bastante familiar na obra de Weerasethakul. A câmera de Sayombhu Mukdeeprom permanece estática em longos planos, capturando as mínimas reações, e estendendo os momentos de modo que eles ficassem realmente registrados na memória, em contraponto à brevidade do ruído incitante da trama. A direção de som, realizada por Akritchalerm Kalayanamitr e Richard Hocks, trabalha o contraponto entre ambientações cheias de ruído como o centro de uma cidade ou uma chuva forte, com espaços onde reina o silêncio absoluto, em que o leve ruído de se ajeitar no assento de uma cadeira já é um grito. 

No terceiro ato da narrativa, o encontro entre Jessica e um outro Hernán mais velho (Elkin Díaz) é extenso, estranho, e hipnotizante.  “Por que chora se essas memórias não são suas?”, pergunta Hernán, enquanto Jessica se emociona ao visitar as lembranças de seu interlocutor. A pergunta salta da tela, se estendendo ao público. Por que as narrativas nos emocionam? Por que as recordações do passado nos cativam? O que há de tão atraente e belo nas vivências que já passaram, de pessoas que muitas vezes já nem estão mais entre nós? Há muitas interrogações, mas Memoria nos deixa tantas respostas quanto perguntas, pois as dúvidas já carregam em si uma afirmação. Há algo nas narrativas que nos emociona, existe algo nas recordações que nos cativa. Há nas vivências alheias algo de atraente e belo que nos faz buscar outras memórias, outras vivências, outras histórias. 

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