5 anos de Velho Chico: a novela que foi uma obra de arte

Cena da novela Velho Chico. Na imagem, vemos a cerimônia de casamento do Coronel Afrânio Sá Ribeiro e Leonor. O Coronel está no altar, trajando um terno marrom, ao lado da sua noiva, que usa um véu transparente sobre o rosto.
Em retorno inédito à TV nacional, o astro Rodrigo Santoro deu vida ao coronel Afrânio Saruê na melhor fase da trama (Foto: Reprodução)

Vanessa Marques

Uma história de amor e guerra no sertão nordestino. Há cinco anos, Velho  Chico, do autor Benedito Ruy Barbosa (Rei do Gado e Pantanal), chegava ao horário nobre da Globo. A telenovela, marcada por uma tragédia em sua reta final, rompeu a hegemonia dos centros urbanos para levar o sotaque baiano e a paisagem sertaneja para as noites dos lares brasileiros. Com o forte apelo estético de Luiz Fernando Carvalho (Capitu), o melodrama desfrutou de uma tríade de peso: elenco, direção de arte e trilha sonora. Ambientada na cidade fictícia de Grotas do São Francisco, a narrativa reuniu a imagem de um Brasil esquecido e devastado pela seca — enquanto as águas do Rio São Francisco banhavam os conflitos de três gerações das famílias Sá Ribeiro e Dos Anjos.

A primeira fase foi uma obra sensível e impecável. Entre os ares de tropicália e libertinagem da década de 1960, o jovem Afrânio (Rodrigo Santoro) é forçado a deixar sua vida na capital para assumir as rédeas do império rural de seu falecido pai, o Coronel Jacinto Sá Ribeiro (Tarcísio Meira). Além do comando das terras e da política da região, o antigo Coronel Saruê deixa ao filho uma rivalidade declarada com o íntegro Capitão Ernesto Rosa (Rodrigo Lombardi). O anti-herói de Santoro vai, pouco a pouco, fazendo a transição do universitário carregado de ideais para a postura férrea que o seu destino lhe impõe. Nesse ínterim, ele se casa com Leonor (Marina Nery), união que dá luz a uma primogênita chamada Maria Tereza, para o desgosto da matriarca Dona Encarnação (Selma Egrei).

Fotografia da novela Velho Chico. Sob um céu nublado e levemente acinzentado, os personagens Afrânio e seu capanga, Clemente, cavalgam na plantação de algodão da fazenda. No canto inferior direito, vemos uma camponesa, prostrada de lado, com um lenço que lhe cobre o cabelo.
Esteticamente, Velho Chico era um espetáculo: a paisagem e os demais elementos da vida rural estavam imersos numa fotografia lúdica, barroca e cinematográfica (Foto: Reprodução)

Fora a cadência do dialeto nordestino, os personagens possuem os corpos e rostos suados, castigados pelo sol escaldante do sertão. O retrato político da seca e da concentração fundiária emerge no nascimento de Santo dos Anjos. Os seus pais, Piedade (Cyria Coentro) e Belmiro (Chico Diaz), são retirantes que fogem das mazelas do semiárido e buscam uma vida nova nas margens do Velho Chico. É na igreja do Padre Romão (Umberto Magnani) que o menino, enfraquecido pela longa viagem, recebe o sopro de vida do batismo. Logo, o núcleo dos Anjos é acolhido na fazenda do Capitão Rosa e de sua esposa, Eulália (Fabiula Nascimento), que haviam adotado a pequena Luzia.

Poucos anos mais tarde, o romance juvenil de Santo (Renato Góes) e Maria Tereza (Julia Dalavia) brota em meio ao rancor e à violência do conflito familiar. O encanto e a sinergia da dupla “novata” de atores ganham a ternura do espectador, pintando o grande pano de fundo da narrativa. Mas a união desejada do casal é inaceitável na visão do Coronel Afrânio, que envia Tereza para um colégio interno. Lá, ela descobre estar grávida do amado, tal qual é praxe no ramo noveleiro. Assim, o assassinato de Belmiro, que seguiu o mesmo fim brutal do heroico Ernesto Rosa, entrecorta o panorama daquela guerra que já se tornava ancestral. Diante da separação arbitrária, os dois amantes tomam rumos distintos, com o fio condutor do rio emblemático. 

Cena da novela Velho Chico. A jovem Tereza, parada, usa um longo vestido branco de noiva, prestes a casar-se com o político Carlos Eduardo. Ao fundo, vemos uma embarcação de pescadores, no Rio São Francisco.
O amor proibido entre Santo e Maria Tereza é uma versão sertaneja de “Romeu e Julieta” (Foto: Reprodução)

Velho Chico perpassa o tempo embalada em poesia visual e brasilidade, com destaque para a trilha sonora de Caetano Veloso (Tropicália, tema de abertura), Gal Costa, Maria Bethânia, Alceu Valença, Geraldo Vandré (Requiém para Matraga) e Novos Baianos. Era a primeira vez que uma novela tinha pouquíssima “cara de novela”. Num salto para 2016, Maria Tereza (Camila Pitanga), casada com o deputado Carlos Eduardo (Marcelo Serrado), retorna à cidade natal, na companhia do filho, Miguel (Gabriel Leone). Porém, é certo que, a partir do segundo ciclo, o folhetim perdeu o vigor. O que fora uma brilhante saga familiar virou uma trama irregular, arrastada e lenta. 

Santo (Domingos Montagner), agora marido de Luzia (Lucy Alves), é um líder progressista da terra, o oposto do Coronel Saruê (Antônio Fagundes), que se transforma em uma figura caricata, retrógrada e inflexível na velhice. Beirando o cômico, Fagundes entregou um Afrânio sem resquícios do homem libertário da juventude. Já Miguel rouba a cena com sensibilidade e postura humanista, mas também protagoniza uma relação especial com Olivia (Giullia Buscacio). O reencontro de Tereza e Santo custa a acontecer, postergando a típica revelação da paternidade. Irandhir Santos é outro nome que enriquece o tom lírico da nova geração, no papel de Bento dos Anjos, irmão mais novo do agricultor.

Cena da novela Velho Chico. Santo, enquanto cavalga, é alvejado por um tiro no ombro. No fundo, vemos o céu luminoso, entre nuvens, e a paisagem da caatinga.
Com olhar crítico, a novela debateu a politicagem e a exploração do homem da terra (Foto: Reprodução)

Elencando realismo mágico, temática ambiental e crítica social, o romance  de Ruy Barbosa — escrito por Edmara Barbosa e Bruno Luperi — terminou com a melancolia de um incidente que embaralhou ficção e realidade. Após o falecimento do ator Domingos Montagner, afogado no Rio São Francisco, a produção se reinventou para honrar o legado do intérprete de Santo, mantendo a sua presença no desfecho da trama. Dias antes, o personagem estava desaparecido na extensão do rio, sendo resgatado, quase sem vida, por uma tribo indígena do local. Fatalmente, a vida imitou a arte, no sentido mais fatídico da palavra.

Apesar dos golpes do destino e da relativa baixa audiência, Velho Chico ocupa o alto patamar da teledramaturgia, o mesmo de O Bem Amado e Gabriela. Indicada ao Emmy Internacional, a novela passou a compor o catálogo internacional da Rede Globo no ano de 2018. Embora não tenha sido deslumbrante do início ao fim, o clássico do sertão provou com sangue e lágrimas a máxima de Euclides da Cunha: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte.”

Cena da novela Velho Chico. Tereza, Miguel, Olívia e os demais membros da família Dos Anjos interagem com uma câmera subjetiva, que representa o olhar de Santo. O intérprete do protagonista faleceu na reta final da produção, após um trágico mergulho no Rio São Francisco. Com um leve desfoque, é possível enxergar a composição do rosto de Domingos Montagner.
O último capítulo reproduziu a presença e o olhar de Santo, através de uma câmera subjetiva (Foto: Reprodução)

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