A literatura peculiar de Belle & Sebastian

if you're feeling sinister

Gabriel Leite Ferreira

No dia 13 de outubro, uma quarta-feira, o anúncio de que o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2016 era nada mais, nada menos que Bob Dylan pegou muitos de surpresa. Seguiu-se um debate acalorado: vale conceder um prêmio literário a um cantor e compositor? “Banalização da literatura!”, pretensos especialistas de internet decretaram. É fato que há casos em que as palavras são tão ou mais importantes que a música em si. Dylan é a mais plena personificação disso. Stuart Murdoch, um de seus tantos herdeiros, também.

Murdoch estava entrando na universidade quando um acontecimento inesperado alterou totalmente os rumos de sua vida. Diagnosticado com síndrome da fadiga crônica, ele foi forçado a abandonar os estudos e voltar para a casa dos pais – de volta à estaca zero. Doente e deprimido, encontrou refúgio na música, primeiro compondo sozinho e depois com um grupo de nome peculiar.

Peculiar – talvez seja essa a melhor definição para o Belle & Sebastian. A banda é o maior expoente de um subgênero dos mais específicos, o twee pop. Nasceu da parceria entre dois amigos, Murdoch e Stuart David, e logo evoluiu para um time de sete (!) instrumentistas, de guitarristas e baixistas a violinistas e trompetistas. A estreia com “Tigermilk” em 1996 começou como um trabalho de conclusão do curso de produção musical. O nome do octeto é uma referência à série de televisão infantil homônima. Tudo isso convergiu e se entrelaçou perfeitamente há 20 anos na concepção do segundo álbum, o clássico “If You’re Feeling Sinister”.

Sinistro, não. Fofo, sim.
Sinistro, não. Fofo, sim.

Em linhas gerais, o twee pop é um híbrido do folk/pop dos anos 1960 com o pós-punk orgânico dos Smiths. Isso também transparece nas letras, que invariavelmente tratam de infância, relacionamentos amorosos, solidão e demais temáticas românticas e/ou fofas (não por acaso a tradução mais comum para “twee”). Nesse âmbito, Murdoch se sobressai por construir narrativas ambíguas e universais com personagens curiosos e um senso de humor sutil, elementos também presentes na obra do mestre Dylan.

“If You’re Feeling Sinister” foi gravado logo após o lançamento de “Tigermilk”, período em que a banda estava mais entrosada que nunca. Grande parte das letras do disco nasceu das andanças de Murdoch por Glasgow, sua cidade natal. A fadiga o forçava a passar o tempo em ônibus e trens, observando as pessoas ao redor ao mesmo tempo em que mergulhava em si mesmo. A possibilidade de compor com base no que via e ouvia cotidianamente foi terapêutica. Em suas palavras: “eu sempre quis escrever sobre pessoas normais fazendo coisas normais porque eu não era normal, eu estava fora do jogo”. Para fazer parte do “jogo”, restou a ele a posição de narrador onisciente das desventuras de seus personagens.

Murdoch dá vida a pessoas solitárias, excêntricas e sonhadoras com sutileza e naturalidade tamanhas, como se estivesse contando ao ouvinte sobre um amigo em comum. A caracterização de cada uma delas, por vezes específica e subjetiva, contribui para a analogia com o compositor norte-americano (inclusive citado em “Like Dylan In The Movies”). Dessa forma, ele se permite a aconselhá-las e consolá-las: “Conforme-se e chore até sua vida se esvair / Você está melhor agora?”, sussurra nos primeiros versos de “The Boy Done Wrong Again”. “Posso escrever um poema sobre você agora que você conseguiu?”, indaga em “The Stars of Track and Field”. Essa cautela põe o compositor quase como uma figura paternal, o que não é um exagero visto que as dez faixas refletem aspectos de sua personalidade, tal qual filhos que “puxam” aos pais.

Apesar de indissociável da vida pessoal do vocalista, “Sinister” não soa mórbido como outras obras particulares. “Pink Moon” do Nick Drake, “Closer” do Joy Division e “Skeleton Tree” do Nick Cave & The Bad Seeds, por exemplo, são frutos de tragédias pessoais e por isso estão diretamente ligados a elas. “Sinister”, por outro lado, mantém-se ensolarado até em seus momentos mais intimistas – afinal, é twee pop, e ênfase no pop. O ouvinte atento esbarrará com traços do folk delicado de Nick Drake; contudo, a grande quantidade de instrumentistas dá ao disco um clima de improvisação e descompromisso que faz toda a diferença.

A configuração incomum remete às grandes bandas dos anos 60 e, ao mesmo tempo, fez escola no cenário alternativo a partir da segunda metade dos anos 90. Nomes como Arcade Fire, Sufjan Stevens, Bon Iver e demais expoentes do chamado indie folk devem muito ao Belle and Sebastian. Não que Stuart Murdoch e seus companheiros sejam injustiçados, já que a banda é aclamada pela crítica e caiu nas graças do público. Contudo, a mistura equilibrada dos escoceses encontra poucos paralelos, mesmo 20 anos após sua obra maior. Peculiar, sem dúvida alguma.

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