João Rock 2018: A procura de uma reação

“Mas as pessoas na sala de jantar / Estão ocupadas em nascer e morrer”: o Tropicalismo completa 50 anos em 2018 (Foto: Reprodução)

Camila Araujo

A edição do João Rock 2018 homenageou o movimento tropicalista, que surgiu no final dos anos 60 representado, na música, por nomes como Tom Zé, Os Mutantes, Gilberto Gil, Caetano Veloso, entre outros. O movimento surgiu no auge da ditadura, em que a censura era uma frequência social. A turma da Tropicália clamava por sensibilidade, resistência e luta. Utilizavam-se de metáforas, performances, e diversos mecanismos para burlar o sistema. Não é por menos que Caetano e Gil foram exilados para a Inglaterra, além de muitos outros nomes a época.

50 anos depois, no último sábado, dia 9, Tom Zé, Caetano, Gilberto, Sérgio Dias e outros convidados relembraram o saudoso movimento tropicalista. A plateia era heterogênea: tinham os jovens entusiastas, “rebanho de moleques”, como brincou Tom Zé, que baseiam a admiração pelos registros históricos que restou do passado; tinham também adultos e senhores que, passado meio século, puderam ter o gostinho de reviver o espetáculo; um sonho inesperado, e que movimentou pessoas de todo o estado e adjacentes.

Os Mutantes no palco. A estreia homônima completa 5 décadas esse ano (Foto: Denilson Santos/Deivid Correa/Agnews)

O Palco Brasil, dedicado à categoria dos tropicalistas, começou às 17h com Mutantes. Subiram ao palco Sérgio Dias, o único remanescente da formação original, juntamente com os novos membros Esméria Bulgari (vocais), Henrique Peters (vocais e teclados), Vinícius Junqueira (baixo) e Cláudio Tchernev (bateria) e a presença especial de uma cantora da Califórnia, Carly. Graças a isso, o conjunto entoou as canções da banda em inglês por boa parte do show, relembrando a querida brasileira-estadunidense Rita Lee, que há muito tempo não faz parte da formação.

Sergio, em uma bela performance oral, dedicou palavras odiosas ao presidente golpista Michel “Fora” Temer, e cometeu um pequeno deslize ao evocar Sorocaba em vez de Ribeirão. Não foi um problema. O público logo perdoou e seguiu cantando de cor as músicas que tanto amamos: iniciaram a tarde com a belíssima “Tecnicolor”, passando por “Ando Meio Desligado” (com trechos de “I Feel A Little Spaced Out”), “Top Top”, “A Hora e a Vez de o Cabelo Nascer”, e atingiu o auge com a emocionante “Balada do Louco”. Ainda durante a apresentação, fomos contemplados com um impressionante pôr-do-sol, amalgamado pelas cores azul e rosa. O final, claro, não poderia ser outro: “Panis et Circenses”, música curiosamente atual: “mas as pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer e morrer”.

O show Refavela 40, de Gilberto Gil, contou com participações mais que especiais (Foto: Roberto Galhardo/Divulgação)

No palco principal, Raimundos entra em seguida (e para assistir ao show tivemos que nos deslocar de um palco para o outro). Ali, aglomeração de pessoas e muita energia. Ali tinha também resistência: Digão, vocalista da banda, mandou-nos um “Fora Temer!”, e pediu pelo fim das “velhas raposas da política brasileira”.

Refavela 40, como ficou intitulado o show de Gil, iniciou em seguida, no palco Brasil (outro deslocamento). Na primeira parte da apresentação, a banda Sinara, que já havia tocado mais cedo no palco Fortalecendo a Cena, deu uma palinha, com o filho de Gilberto, Bem Gil, à frente. Ao longo do espetáculo, o músico foi convocando outros convidados, dentre os quais Nara Gil (filha de Gilberto), Anelis Assunção (filha de Itamar Assunção), Lucinha Turnbull, da banda Tutti Frutti, e Moreno Veloso (filho de Caetano). Mas quem mais chamou a atenção com certeza foi o filho de Bem, Dom Gil, acompanhado de sua mãe, Ana Cláudia Lomelino, uma das musicistas do palco.

Tudo em família: Caetano e filhos no palco do João Rock (Foto: Roberto Galhardo/Divulgação)

Moreno carregava uma expressão carismática e emocionada, que refletia bem a representatividade daquele show. O palco estava carregado de presença feminina – além das já citadas, havia também a pianista italiana Chiara Civello. A presença negra era igualmente forte, ao menos no palco… O último a entrar foi Gilberto, causando forte comoção no público. Ele mostrou muita energia, apesar da idade, e cantou com todos ali presentes. Dividiu a atenção entre seus convidados e a plateia. Emocionou.

O show de Caetano com seus filhos foi calmo, bonito e com muito espaço para Tom, Moreno e Zeca. Os filhos mostraram suas composições, Moreno cantou sua música de estreia, Tom Veloso deu a sambadinha clássica a frente do palco, capaz de tirar suspiros dos apaixonados, e Moreno emocionou com sua calma de “macumbeiro”, como foi chamado pelo pai em tom de brincadeira. A única bandeira que o amado Caê levantou foi justamente a da religião: os filhos Tom e Zeca, católicos convictos; Moreno, além de macumbeiro, budista; e Caetano, respeitosamente ateu, inclusive cantando uma música em homenagem a sua avó religiosa.

O show foi praticamente igual aos outros que os quatro haviam feito por um mês no Theatro Net em São Paulo. O que decepcionou foi a falta de comentários acerca do contexto político, social e econômico que vivemos. Um dos principais expoentes do tropicalismo, em uma noite tão simbólica como a de sábado, se omitir de comentários urgentes e necessários para uma plateia que – querendo ou não – ansiava por isso? Um tanto quanto frustrante, ainda que esperado.

Explico: Caetano e Gil ignoraram as súplicas de Roger Waters, ex-baixista do Pink Floyd, para que boicotassem Israel em 2015: “Quando olho para suas fotos, escuto suas músicas, leio a história de suas lutas pessoais e profissionais, lembro de todas as lutas de todos os povos que resistiram a um domínio imperial, militar e colonial através do milênio, que lutaram pelos aprisionados e pelos mortos. Nunca foi fácil, mas sempre foi certo (…). Caros Gilberto e Caetano, os aprisionados e os mortos estendem as mãos. Por favor, unam-se a nós cancelando seu show em Israel.” A dupla, para a decepção dos fãs que se sensibilizam pela causa da Palestina, não desistiu do show (The show must go on?).

Tom Zé: performático, sensível e brilhante (Foto: Roberto Galhardo/Divulgação)

A espera entre um show e outro no palco Brasil durou uma hora. Na sequência, entra Tom Zé – performático e verdadeiro – com uma roupa branca toda suja de tinta, que lembra sangue e sujeira. Com 81 anos e muita energia, Tom Zé mostrou como se faz um show, brincando com as palavras e resumindo bem seu modo de encarar o mundo: “comendo gente fina para vomitar”. Ele clamava por energia, sensibilidade, sem perder a revolta sistêmica que lhe é inerente. “Ordem e Progresso é a porra”, ele gritou como resposta a um espectador que levantava a bandeira do Brasil, logo escondida. Em algum momento, a música do palco principal – onde Criolo se apresentava – escapou para seu palco, e ele brincou que deveriam então fazer mais barulho. Com Tom Zé, o significado de idolatria se desconstrói. Ele é totalmente solícito e acessível, dispondo-se inclusive a assinar autógrafos e abraçar seus admiradores.

Saindo do palco Brasil, onde a noite já se encerrava, Criolo apresentava suas últimas músicas, terminando com uma intensa sequência de “Fora Temer”. A última apresentação da noite foi conduzida pelo Planet Hemp, que levantava bandeiras pela legalização da maconha – “jardineiro não é traficante” – e a todo momento demonstrava indignação. “Não é possível que alguém vote no Bolsonaro”, exclama Marcelo D2, denunciando além da câmara e do golpista presidente, o escândalo da merenda em São Paulo. Seu parceiro BNegão completa: “Desejo boa sorte para o país. Quem quer que o país ande para frente, não vota Bolsonaro. Chega de tortura, racismo, esquadrão da morte”.

A resistência esperada dos tropicalistas apareceu em alguns momentos. Dos mais recentes músicos, rasgou-se energia e vontade de transformar. Ainda que abafadas, as vozes de indignação gritavam para serem ouvidas. Basta agora o grande público reagir a isso.

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