Entre as safras de J. Cole, The Off-Season cumpre seu papel

Capa do álbum The Off-Season. Foto quadrada, com cenário de noite. Ao lado esquerdo da imagem é possível observar uma grande tabela de basquete, queimando em fogo de cima a baixo. Do lado direito, mais à frente, está J. Cole, homem negro, de barba e cabelos em longos dreads que se alongam até seus ombros. Ele veste uma calça e moletom pretos, com suas mãos dentro dos bolsos. Sua cabeça inclina-se para a direita, enquanto apenas parte de seu rosto é iluminado pelo fogo. Além disso, atrás da cena, vemos uma densa cortina de fumaça tomando todo o céu.
Capa do álbum The Off-Season, de J. Cole (Foto: Dreamville)

Enrico Souto

Dia 29 de dezembro de 2020, J. Cole surpreendia a todos com um post inusitado em seu Instagram, consistindo numa imagem da página aberta de um caderno. Em seu topo estava em destaque The Fall Off Era, e, abaixo, listados vários nomes de antigos e possíveis novos projetos, dispostos em uma linha vertical, denotando tempo. Acima, podia-se ler, ambas horizontalmente riscadas, dando a entender que são etapas já cumpridas, Features – em referência à corrida de colaborações que o rapper entregou entre 2018 e 2020 – e ROTD3 – aludindo à última compilação lançada pela Dreamville, gravadora fundada por Cole; uma das melhores produções coletivas que o hip-hop nos concedeu na última década, envolvendo todos os seus artistas associados e inúmeros outros colaboradores.

Mais abaixo, apresentavam-se os dizeres It’s a Boy e The Fall Off, aparentemente futuros trabalhos que podemos esperar de Cole, que dariam seguimento à era aqui anunciada. Em que estágio estamos agora? No centro do papel, sanduichado pelos dizeres citados anteriormente, estava grafado The Off-Season, que seria lançado seis meses depois, em 14 de maio de 2021. O álbum já havia sido antecipado antes com o freestyle Album Of The Year, de 2018, porém sua espera sempre caminhou na sombra de The Fall Off, o projeto mais aguardado de Cole, que promete ser o maior feito de sua carreira. Numa lógica de parasitismo, semelhante ao que ocorre nas produções do MCU, The Off-Season, dentro do roteiro dessa grande epopeia, até cumpre seu papel, porém inevitavelmente tem seu rendimento individual como obra afetado.

Imagem retangular. Tomando quase toda a moldura, está a página aberta de um caderno, em cima de uma mesa de som. Nela está escrito em destaque com tinta da cor azul, no topo, “The Fall Off Era”, seguido de outros dizeres mais abaixo, todos são atravessados por uma linha vertical. Primeiro, riscados horizontalmente, “Features” e “ROTD3”. Adiante, pode-se ler, respectivamente, “The Off-Season”, “It’s a Boy” e “The Fall Off”, o último sublinhado.
Foto do post no Instagram de J. Cole, que revelava a The Fall Off Era e o futuro The Off-Season (Foto: J. Cole/Instagram)

Cole anunciou a data de lançamento de The Off-Season no dia 4 de maio, e, dez dias depois, já estava na rua. O ganho foi imediato: o álbum travou o Spotify nas primeiras horas de lançamento, é o sexto consecutivo da carreira do rapper a alcançar a primeira posição da Billboard 200, totalizou 282 mil cópias vendidas na sua primeira semana, sendo 37 mil através de cópias físicas, e faturando, nada mais, nada menos, que 2 milhões de dólares, apenas nesse período. Se houvessem dúvidas, agora elas não existem mais: sua influência e relevância perduram como nunca.

A obra e vida pública de Cole sempre estiveram muito atreladas com o basquete, e aqui esse vínculo é ainda mais estimulado, aprofundando-se no mini-documentário de bastidores divulgado junto ao álbum, e referenciado do nome à capa. Off-Season, em tradução literal, significa entressafra. Porém, no universo dos esportes, alude ao período entre temporadas esportivas, em que o atleta segue uma rigorosa sequência de treinos, juntamente à uma dieta de grande aporte calórico, com o intuito de alcançar um alto rendimento corporal em curto tempo. Sendo assim, esse é um álbum de transição, em que Cole aperfeiçoa suas competências como músico, compositor e produtor, para assim chegar em sua melhor forma para o seu prenunciado clímax, o álbum The Fall Off.

A capa também dialoga com esse conceito. Ela mostra J. Cole em uma quadra, absorto, enquanto uma tabela de basquete encontra-se completamente em chamas atrás dele. Uma possível interpretação seria que a imagem simbolizaria o final de um ciclo, ficando para trás, que agora dá espaço para o início de um próximo. Em entrevista à revista SLAM, ele aprofunda-se mais na finalidade do disco: “The Off-Season simboliza o trabalho necessário para chegar à altura mais alta. Representa as muitas horas, meses, anos que levou para chegar à sua melhor forma”.

Essa declaração precede o foco temático de The Off-Season. Para todos os efeitos, esse é um trabalho extremamente autorreferenciativo, ou seja, a finalidade do álbum é a aprimoração de suas habilidades e, logo, é esse o tópico que predomina na grande maioria das 12 faixas que o compõem. Inclusive, mesmo quando tece comentários sobre temas distintos, no fim eles sempre apontam para si. p u n c h i n ‘ . t h e . c l o c k, por exemplo, é sobre as horas que J. Cole precisou trabalhar para chegar onde deseja, 1 0 0 . m i l ‘ fala sobre ele continuar se aperfeiçoando independente dos lugares que já alcançou, a m a r i gira em torno da sua ascensão ao topo da cena e i n t e r l u d e comenta sobre as várias formas com que esse posto o atravessa.

Imagem retangular com o fundo branco. De perfil, no centro, observamos J. Cole, homem negro, de barba e cabelos em longos dreads que se alongam até seus ombros. Ele aparece apenas da cintura para cima, vestindo um largo moletom cinza. Nas mãos, ele segura uma bola de basquete laranja, enquanto olha seriamente para ela.
Imagem do ensaio de J. Cole para a capa da revista SLAM (Foto: SLAM)

Isso não é um problema em si, afinal, o rapper ascendeu socialmente e então, naturalmente, cantará sobre o que ele vive no presente. No entanto, não deixa de ser um tema repetitivo, que facilmente se satura no entorno dos seus 40 minutos de duração. Essa questão também já havia sido discutida em junho de 2020, quando a rapper e ativista Noname exigiu o posicionamento dos veteranos da cena sobre as manifestações da Black Lives Matter, e Cole a respondeu com o single Snow on tha Bluff, trazendo o pauta para si e, consequentemente, sendo alvo de questionamentos quando, ao invés de dar visibilidade para uma luta coletiva mais relevante que qualquer figura pública, ele optou por transformá-la em algo unicamente sobre si.

De qualquer forma, mesmo que repetitivo, o carisma de J. Cole perdura e ainda consegue tirar bons resultados desse foco temático. a p p l y i n g . p r e s s u r e critica as tendências danosas da atual cena do hip-hop, semelhante ao que o rapper já havia feito na icônica canção 1985, porém, ao invés de incorporar uma posição preocupada e conselheira, quase paternalista, aqui ele vai na ferida, não poupa nos comentários e os expõe da forma mais prolixa, ácida e mordaz possível, enquanto também enaltece e demonstra suas habilidades na melhor entrega lírica de The Off-Season.

Além dela, 9 5 . s o u t h abre o disco da melhor forma possível. O sample da música Put Yo Hood Up, de Lil Jon, que entoa com potência o mantra “represent your shit, mothefucker”, sintetiza a mensagem que Cole comunica, colocando a nova geração de rappers contra a parede e questionando seu comportamento de mercado e, principalmente, como vários renegam suas origens quando alcançam plenitude financeira. Aliado a versos enfatizando suas perícias no microfone, a música circula por temas bastante semelhantes aos de a p p l y i n g . p r e s s u r e e outras faixas citadas, mas ganha destaque pela confiança e criatividade que transborda das rimas e pelo instrumental poderoso que revisita a memorável cena musical dos anos 2000 – uma das peculiaridades da sonoridade geral de The Off-Season, que é um dos seus pontos mais fortes.

Diferente de Kendrick, que costuma trabalhar com instrumentais alternativos e experimentais, raramente mirando em um resultado pop, a obra de J. Cole, mesmo que ainda única e atemporal, dialoga mais diretamente com as tendências musicais contemporâneas, como o drill e o trap. Ainda assim, ele não abandona as convenções tradicionais do rap, e isso se traduz no elenco diverso de colaboradores e produtores que o acompanham nesse projeto. Dos samples inventivos e sintetizadores melódicos de Frank Dukes, dos beats modernos e baterias compassadas de Boi-1da, da produção marcante e cheia de identidade do veterano Timbaland, até as parcerias de praxe entre Cole e o talentosíssimo T-Minus, que também assina a produção executiva do álbum.

Contribuindo com suas vozes, nos deparamos com um grupo talentosíssimo de artistas, que ora auxiliam com primor a lapidar a obra, como as melodias doces e suaves de Bas que emergem em várias faixas, destoando da entrega densa de Cole, a contribuição tímida mas notável de 6LACK e as rimas firmes e intrépidas da promessa Lil Baby na música p r i d e . i s . t h e . d e v i l, ora nem tanto. m y . l i f e, com feats de 21 Savage e Morray, certamente a mais fraca da tracklist, tenta assiduamente reproduzir a fórmula que consumou o hit a lot – de fundamentar o beat na dicotomia entre melodias setentistas e elementos sonoros do trap – sem metade da inspiração que emana da canção vencedora do Grammy. E, nesse caso, o esforço de nenhum dos dois vocalistas salva esse pastiche.

Contudo, são nos curtos intervalos em que J. Cole abre mão dessa temática base de trabalho e aperfeiçoamento que The Off-Season realmente brilha. t h e . c l i m b . b a c k é um retorno tocante e emocional às suas origens, em que ele revisita amargamente intempéries de sua vida passada, e ali reencontra seu amor pelo rap e o motivo pelo qual começou a fazer música em primeiro lugar. c l o s e constrói a narrativa de um amigo de longa-data de Cole que acabou submetendo-se a vida do crime e das drogas e, apesar dos esforços daqueles à sua volta, teve um fim trágico. 

Em l e t . g o . m y . h a n d, seguindo caminhos semelhantes, ele enfrenta seu medo e receio de ver seus dois filhos crescendo e amadurecendo em um mundo racista e hostil para garotos como eles, e em h u n g e r . o n . h i l l s i d e ele conta as dificuldades de se manter íntegro e fiel às suas convicções em meio ao sucesso e aos holofotes. Esses são os pontos altos do álbum e, sendo assim, seus melhores momentos são quando Cole abandona sua blindagem emocional e decide se despir, tornar-se vulnerável, mergulhar nas suas fraquezas para, por fim, encontrar ali a força e motivação que ele tanto busca. Momentos que, infelizmente, são escassos em The Off-Season e que poderiam ter sido melhor aproveitados.

Em todo caso, independente dos rumores sobre sua aposentadoria, J. Cole segue produzindo obstinadamente. Depois de três anos sem lançar um projeto solo, todos os olhos continuam a encará-lo. Mesmo um mês depois de seu lançamento, o álbum mantém-se firme e forte ocupando o top 5 da Billboard 200, e não parece que vai amaciar tão cedo. E, independente do incontestável sucesso numérico, é fato que o rapper é um dos artistas mais importantes para o hip-hop e para a Música no século XXI, respeitado por absolutamente todos que cruzam seu trabalho, e não vai ser agora que isso será questionado.

Em síntese, a despeito de suas oscilações e visíveis problemas, o saldo final de The Off-Season é positivo. E, dentro do escopo da The Fall Off Era, o álbum apresenta uma função expressamente definida. Todavia, é preocupante como esse método de produção retirado direto dos filmes da Marvel pode ser ainda mais nocivo se apropriado pela indústria fonográfica. Não que seja esse o caso – J. Cole tem liberdade criativa o suficiente para tomar controle de sua obra –, mas ainda assim é um sinal vermelho. No mais, a empolgação é grande para saber quais truques Jermaine ainda tem guardado nas mangas.

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