A 2ª temporada de Hunters aproveita as brechas da liberdade criativa

Texto Alternativo: Cena da série Hunters. Nele estão 4 pessoas. Dois homens e duas mulheres.Estão andando com roupas de gala em um salão ornamental. A esquerda, um homem e uma mulher brancos, vestem um terno vermelho e amarelo e um vestido prateado respectivamente. A direita, um homem branco e uma mulher negra. Vestem um terno vermelho de veludo e um vestido marrom
David Weil, showrunner de Hunters, subiu ao estrelato com a série que o representa pessoalmente por ser neto de sobreviventes do Holocausto (Foto: Amazon Prime Video)

Henrique Marinhos

Há três anos estreava a dualista primeira temporada de Hunters. Aos que conseguiram terminá-la, hoje podem apreciar o segundo – e maior – ato do enredo, desenvolvido por David Weil, Mark Bianculli, Nikki Toscano e David Rosen, que divide opiniões. Com um exímio elenco, a série traz Al Pacino de volta às telas, já que seu último papel em uma produção para televisão foi em 2003, em Angels in America. Agora, o ator interpreta Meyer Offerman, um líder de caçadores nazistas à procura de fechar as feridas deixadas pela Segunda Guerra Mundial.

Longa, lenta e detalhada, a obra constrói personalidades profundas cheias de motivações, histórias e nuances. Porém, apenas na segunda temporada a conexão entre essa profundidade e a narrativa deslumbra seu público. Como acontece em um filme de origem, a morte da avó de Jonah Heidelbaum (Logan Lerman) é o ponto de ignição que incentiva o jovem da primeira geração pós-guerra a procurar o assassino que tirou a única família conhecida por ele. Infelizmente, o desenrolar do roteiro apresenta uma transição gradativa e confusa para relacionar as motivações pessoais à causa maior, mas, aos quarenta e cinco do segundo tempo, as lacunas se complementam esplendorosamente.

Texto Alternativo: Cena da série Hunters. Na imagem a peça central é um largo sofá atrás de uma mesa. Nele estão sentadas quatro pessoas, três mulheres e um homem. Ao fundo está um homem debruçado em uma parede de vidros e a frente outro homem em uma poltrona. Todos encaram a frente.
Al Pacino concorreu a Melhor Ator em Série de Drama no Globo de Ouro 2021 pela primeira temporada de Hunters, mas a série não levou nenhum prêmio (Foto: Amazon Prime Video)

Produzida por Jordan Peele, a série desenvolve elementos que percorrem uma linha tênue entre o encaixe perfeito de peças totalmente diferentes e o completo caos. Assim, ela permanece intacta do começo ao fim, desde a fotografia  saturada, assinada por John Lindley Asc, em referência direta a Bastardos Inglórios, até a ambientação da época, por Toscano e Weil, que, ironicamente, remete aos filmes de ação protagonizados por Al Pacino na década de 1970. 

A apresentação da série como dualista – ou até multifacetada – não se dá somente por quesitos técnicos. A coexistência do teor reacionário em que a temática ficcional trabalha e a realidade na qual se baseia também é um ingrediente capaz de refletir questões sociais complexas nas quais a arte está inserida. O Museu de Auschwitz, por exemplo, criticou a criação de um tabuleiro de xadrez humano representado na obra após o lançamento e popularização do episódio, mencionando que honram as vítimas preservando a precisão factual e inventar um falso jogo não é apenas uma “tolice perigosa e uma caricatura, mas também dá boas-vindas aos futuros negacionistas”.

Texto Alternativo: Cena da série Hunters. A imagem apresenta um tabuleiro de xadrez gigante, em que suas divisões são a grama alta e a grama cortada. Suas peças são representadas por pessoas reais.
Em entrevista a EW, Weil menciona: “Levo incrivelmente a sério esse relacionamento com o público e esse feedback. A segunda temporada é, para mim, uma bela evolução da história de Hunters” (Foto: Amazon Prime Video)

Ainda que o criador descreva Hunters como “uma carta de amor à sua avó materna”, a polêmica difundida pelo Museu gerou diversas divergências entre o público. Mesmo assim, não é possível negar que a expressão de determinadas cenas e construções – ainda que fictícias – transgride e minimiza diretamente os pilares da resistência construídos pelos sobreviventes do Holocausto em memória à identidade judaica.

Ainda com as problemáticas bem expressas e válidas, a obra provoca uma imersão desde o começo, sendo possível elaborar um quadro de pistas com todas as conexões e pontos centrais da trama. A série trabalha com reviravoltas constantes e coesas, refletidas em uma cadeia de objetivos. descritos por Joshua Rivera, do The Verge, como “uma lembrança angustiante do sofrimento do Holocausto, uma fantasia de vingança satisfatória, uma peça de época sensacional e uma comédia de humor ácido”. Tudo isso é representado e introduzido de um jeito caótico pelo primeiro teaser da produção, exibido no SuperBowl 2020.

Texto Alternativo: Cena da série Hunters. Ao centro está uma mulher negra de cabelos curtos e lisos que encara sua frente com temor. Interpretada pela atriz Jerrika Hinton. A mulher está com um colar curto prateado e camiseta de manga longa. A imagem apresenta apenas a visão de seus ombros à cabeça.
Em Hunters, a agente do FBI Millie Morris (Jerrika Hinton) encontra uma cientista da NASA assassinada, que faz referência às infiltrações nazistas em instituições americanas (Foto: Amazon Prime Video)

A temática não se restringe a fatos documentais e tampouco a ficções distantes e questões reflexivas. Desde o simples fato de existir, Hunters tenta seguir uma onda de lançamentos de obras históricas que criticam o retrocesso com a recente alta da extrema-direita na mídia, o neofascismo em instituições governamentais e os discursos de ódio. Mas sua referência não é tão bem integrada quanto seus aspectos técnicos e roteiro. Críticas por críticas não promovem reflexão. Além de tudo, sua referenciação histórica é rasa e não desenvolvida, e está entre a lembrança do Holocausto e uma fantasia corajosa.

Por si só, a obra indiscutivelmente apresenta um âmago curioso, imprevisível e ainda instigante. Seja pela produção de Peele, produtor de Corra e Não! Não Olhe!; pelo elenco hipnotizante com Lerman, Pacino, Tiffany Boone, Jennifer Jason Leigh e muitos outros caçando nazistas – o que poderia ter dado errado? -; ou pela estonteante fotografia e direção de câmera. Mas, acima de tudo, pela imprevisibilidade de um roteiro coeso e bem construído.

Texto Alternativo: Cena da série Hunters. Na imagem a peça central é uma casa de cimento coberta por plantas. Seu telhado é coberto de grama e suas portas e janelas de madeira clara. Ao redor um vasto campo verde e florestas ao fundo. A frente uma passarela de pedras que segue até a rua.
A revista Veja realizou uma análise de veracidade e um dos fatos 100% verdadeiros é a infiltração de nazistas em instituições americanas de renome, como a NASA e o FBI
(Foto: Amazon Prime Video)

O penúltimo episódio da temporada performa tudo aquilo que a produção poderia ser: majestosa, intensa, angustiante e representativa. O grande acerto de Hunters foi entregue em seu sétimo episódio, The Home, com performances, cenários e um roteiro de invejar longas-metragens durantes seus hipnotizantes 40 minutos. As referências sutis, em que cada cena aparenta ser milimetricamente pensada, o transformaram em um quebra-cabeças de mil peças, em que mesmo a satisfação provocada por concluí-lo é seguida pela tristeza da imagem formada e da história contada.

Ao fim, o segundo ano se resume a um desenvolvimento inicial clichê, mas capaz de preencher todos os requisitos de uma boa série que reúne a turma na última temporada – agora, com um objetivo maior deixando todo seu desenvolvimento cada vez mais imprevisível. Caminhando para seu encerramento programado, a obra não poderia abrir brechas para quaisquer pontas soltas e seu público sabe disso. Se tratando de uma temática de época, cabe ao contemporâneo refletir sobre o que a história pode nos ajudar a prevenir.

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