Gabriel Leite Ferreira
“S. C. A.”, novo disco do rapper FBC, saiu no fim de outubro. Esbarrei com ele por acaso no Spotify, 30 minutos em poucas faixas, tava indo dormir, mas por que não? Vários dos discos do ano tiveram essa mesma duração, afinal…
“S. C. A.”, por outro lado, é old school. Desde a genial capa, referência ao clássico supremo do black metal “INRI”, do Sarcófago, à produção e às letras, Fabrício FBC se deixa muito claro: ele é filho dos anos 80, não da farra trapper recente. Ele é Illmatic, não Culture.
Vide as incursões rápidas e dinâmicas de beats de trap no boom bap direto que guia as 10 faixas. O interlúdio “Rap Acústico” dá a ideia da maneira mais curta e mais grossa: uma letra melosa a la Delacruz – que causou polêmica no Twitter recentemente (o tweet foi excluído, risos) – seguido de um sonoro “COLOCA UM BEAT DE TRAP AÍ, PORRA!!!”.
“Eu tenho um plano e eu vou ficar rico/Deixar a família bem, emprego pros amigo”, diz sereno na “Frank & Tikão”, potente abertura. Afeto e desgraça familiares colidindo sem massagem: “Tirar da tranca meus manos garrados/Pagar o custo dos advogados/Fumar um atrás do outro, eu amo meu trabalho/ ‘Não se preocupa, fuma mais, pra nóiz maconha é mato’.”
Claro, drogas e materialismo também, como sempre. Mas na mesma faixa ele vocifera “Vocês queriam um show de trap/Isso é um assalto” que, mais que uma baita punchline, é tentativa de puxar o trap de volta pras biqueiras, seu lugar de origem (trap em inglês é biqueira). Reacionarismo? Não; consciência de classe.
A ascensão do trap não foi meteórica — foi o astronauta de “2001: Uma Odisseia no Espaço” controlando, depois de décadas de lições opressivas, o maligno HAL9000. Migos e Future penaram, mas aprenderam a jogar o jogo da megaindústria branca e racista; todo o mérito a eles. Mas, uma coisa é certa: o embranquecimento veio a toque de caixa e, se em 2016 “Bad and Boujee” virou hit, em 2018 “Motorsport” não passou de uma boa canção que, diluída com o feat manjado de Nicki Minaj (e vídeoclipe mais limpo que uma lavadora Eletrolux na caixa), perdeu toda a força que eles tinham no começo.
Quando ouvi “Bad and Boujee” tomei um soco: eu só conhecia o creme do hip hop old school, não a cobertura da nova geração. Sei o verso de Offset de cor e nem precisei ouvi-la muitas vezes. É certo que Quavo e sua autoestima Drakeniana (rá!) não era necessário e Takeoff é ofuscado por si só, mas Lil Uzi Vert dá o brilho do primeiro hit transcontinental do trap, junto do Migo mais carismático. Eles são punks — o cabelo rosa de Uzi, as tranças estilosamente amarradas de Offset, o flow rápido e certeiro.
Umextrapunkprumextrap: quem é Costa Gold na fila do flow???
Se Fabrício não for fã ou ao menos familiarizado com metal extremo, ficarei surpreso. “INRI”, apesar de aclamado pelos pais noruegueses do black metal, é um dos álbuns mais rápidos já feitos neste país e, claro, é underground. Tem que cavar muito para que se torne figurinha de capa no seu álbum. Caralho! Ele é mineiro, assim como a banda fundada por Wagner Lamounier!!! Ok, explicado — e genial do mesmo jeito.
Me lembrei agora do grande “Atrocity Exhibition” de Danny Brown, cujo título vem de uma música do Joy Division, e o tracklist tem ainda a pesadíssima “Downward Spiral” — avisa o Trent que ele também é rua!!!
Menos amor abusivo, mais amor próprio
Será mesmo? Nesse momento ouço a nona faixa, “Sexo, Cocaína e Assassinato”, e que puta refrão! Nem preciso prestar atenção na letra pra vibrar com esse refrão, mano…
“Mano” nada. Qualéquié, branquinho?! Eu sou universitário caucasiano, eu não sei o que um preto e uma preta passam na quebrada, na escola, na faculdade (particular, quando muito), no distrito policial…
Mas eu sei o que meu pai passa pra me dar a educação excelente que tive e tenho. As semanas que, se acumuladas, transformam-se em meses e anos fora de casa trabalhando. Rodando o país inteiro em busca de dinheiro pra me manter na escola particular e, agora, em faculdade pública (coisa que se repete da mesmíssima forma com meu irmão mais novo agora).
Trent Reznor deixou a bucólica Pensilvânia pra apanhar nos Estados Unidos até poder bater tudo e todos na música industrial. FBC, por sua vez, ainda está na luta para se fincar na cena. Na ótima “Não Duvide”, canta sobre o orgulho que sente em poder dizer com todas as letras: “meus tênis de marca vieram da caixa, não do tráfico.”
A citação não é literal (afina, estou na última faixa, “Poder, Pt. 2”) e nem precisa: a ideia saiu do Spotify, superou os pixels da tela do celular, condensou à luz e voltou pra mim pronta — como esse texto, agora.
Minto. O texto não veio pronto nem nunca vai estar. Eu escrevo, leio, edito, escrevo, leio, edito e não fico satisfeito (inútil ciclo vicioso). Do mesmo modo, “S. C. A.” soa um pouquinho inacabado após a excepcional “Itinerário de I.O.” em que Djonga, amigo de rap e da vida, declama uma verdadeira carta de amor em admitido improviso (o que só aumenta a pujança da faixa) – porra, Gabriel, FODA-SE VOCÊ (e a polícia, como na fantástica “Contradições”)!!!
Enfim, me empolguei. Mas “Itinerário” tem o mesmo espírito de “Playing Possum”, a extrema faixa no miolo do “Some Rap Songs” de Earl Sweatshirt — samples da voz do pai morto e da mãe ausente numa base onírica e infantil— e, não por acaso, a melhor canção do ano segundo este que vos escreve. Bom, pode ser só impressão errada minha, né?! Aliás, aguardem que logo menos eu e Egberto Santana Nunes, popular Egg, traremos mais esta pepita para as nobres leitoras e leitores do Persona!
(Uma das) música do ano!
É muito louco ter essas epifanias porque elas sempre vem em contextos nada sérios: a ideia do TCC me veio enquanto eu fazia nada na internet, “S. C. A.” me veio quando eu estava me preparando pra tomar banho e dormir (tá tarde!!!), esse texto me veio enquanto eu duvidava que “S. C. A.” pudesse me cativar mais que “Kids See Ghosts”,“Die Lit”, “ye” e “Daytona” (aka os principais discos do rap gringo de 2018) no final do segundo tempo do ano. Meu primeiro texto na VICE? Veremos — tomara que o editor me responda logo!
Opa, não foi dessa vez, hehe… maaaaaaaaaaas…
…pois é. Aconteceu. O disco terminou, o texto saiu. Eu vou me aprontar pra dormir que passou da hora. Mas amanhã ouço “S. C. A.” de novo; 30 minutos que equivalem a 30 discos. Fodam-se os discos, na verdade: “S. C. A.” e FBC equivalem a 30 vidas.
EDIT: Nem dormi. Mas tô aqui reouvindo esse clássico instantâneo. Ouçam! 🙂