Estante do Persona – Março de 2023

Imergindo na subjetividade, o Clube do Livro de Março conheceu a franqueza de Aurora Venturini em As Primas (Foto: Fósforo/Arte: Aryadne Xavier/Texto de Abertura: Jamily Rigonatto)

“Mas tudo passa neste mundo imundo. Por isso não faz sentido se afligir demais por nada nem ninguém. Às vezes penso que somos um sonho ou um pesadelo realizado dia após dia que a qualquer momento não será mais, que não aparecerá mais no telão da alma para nos atormentar.”

– Aurora Venturini

Aprofundando os laços familiares, o Clube do Livro do Persona escolheu os ares argentinos para guiar os ventos no terceiro mês do ano. Sob as linhas de uma protagonista de personalidade forte, as páginas de As Primas, de Aurora Venturini, encaminharam uma leitura curiosa e repulsivamente divertida. Definida como uma espécie de autobiografia, a obra é narrada por Yuna, uma mulher com deficiência vivendo rodeada de um contexto trágico em que a violência e a vulnerabilidade social abraçam mulheres e seus laços sanguíneos. 

Com características únicas, o livro não performa o mais politicamente correto dos textos. Sob os pensamentos, julgamentos e o nojo voraz carregados pela personagem principal, somos afundados em uma narrativa sem filtros na qual o incomum ganha forma em linhas curvas e manchas de tinta. O movimento atípico se reflete na construção de uma escrita que considera a pontuação secundária e dá holofotes à sinceridade liberta. 

Em 160 páginas, Yuna detalha as figuras de sua família e os eventos assombrados que a perseguem enquanto registra tudo em cor e sombra através de suas pinturas. Sob as pinceladas, aborto, prostituição, morte e abuso ganham retratações ácidas. Entre a mãe, a irmã Betina, a tia Nenê e as primas Carina e Petra, o grotesco e o desatino remontam um viés peculiar da vivência de vítimas da opressão oferecida pelo destino. 

O romance é o primeiro e único das mais de 40 publicações de Aurora e marca sua estreia no universo literário da América Latina. Em um deslumbramento brutal, o escrito consagrou a literata aos 85 anos com o prêmio Nueva Novela em 2007. No Brasil, a obra ganhou a primeira versão em setembro de 2022 pela Editora Fósforo e foi traduzida por Mariana Sanchez. 

Em tons insólitos, As Primas causou um rebuliço comicamente miserável. Para não perder o costume, os membros da nossa editoria não falham em dar opções aos que querem adentrar relações similarmente complicadas, mas também contemplam os interessados em conhecer outras das infinitas possibilidades oferecidas pela Literatura. Por isso, o Estante do Persona de Março deixa suas primorosas indicações para estampar o cinza outonal.

Livro do Mês

No especial prefácio de Mariana Enriquez, a escritora, júri do prêmio Nueva Novela, relata a surpresa da leitura do romance (Foto: Fósforo)

A autoria de As Primas não é de um rebelde poeta da geração beat nem de um discípulo do cinema camp de John Waters, mesmo que o grotesco – elemento constitutivo de ambas textualidades — seja um de seus maiores potenciais poéticos. Pertence sim, à argentina Aurora Venturini que, aos 85 anos, o submete como seu primeiro romance ao Prêmio Nueva Novela e, apesar de sua prosa degenerada e tomada de desassossego, o vence. No entanto, o choque não vem exatamente de uma descongruência da autora com a sua narrativa, dita autobiográfica; pois não é como se Venturini fosse, exatamente, tomada da docilidade e ordinariedade que muitas vezes é esperada de uma figura senil. As estranhezas de cultivar aranhas como animais de estimação ou de alegar,  após ter sido hospitalizada depois de um acidente, ter visitado o Inferno e, claro, por isso ser próxima de um padre exorcista, não são distantes do mundo insubmisso de suas personagens.

A construção dessa autobiografia ficcional, que engaja todos os jogos literários do gênero — como a dúvida do quanto do que é narrado é a verdade da personagem e da autora –, trabalha a partir da motivação do mau gosto pelo mau gosto. A protagonista Yuna Riglos, que se descreve como ‘‘limitada’’ e ‘‘degenerada’’ por sua dificuldade de fala, que se transcreve em um fluxo de escrita experimental e metalinguístico, ilustra um retrato completamente parcial de sua própria vida e de sua família, composta essencialmente por mulheres precarizadas e animalizadas por sua ótica cretina. Riglos, que relata sua vida desde o início de sua proeminente carreira de pintora, está sempre à beira do vômito e leva o leitor a mesma sensação. 

Entre o tom exagerado do início da filmografia de Pedro Almodóvar e a apatia assustadora de Yorgos Lanthimos, assassinatos, deficiências e abusos são desmoralizados em grunhidos, risadas e xingamentos por suas personagens. Essas imagens brutais e cruéis tecidas por Aurora Venturini, amiga punk de Evita Perón e Simone de Beauvoir, são um convite para conhecer uma escrita de si dissociada de qualquer moralidade e que distorce, geralmente, o papel atribuído de verdade universal e politicamente correta dado à primeira pessoa narrativa. As Primas cria um mundo onde é possível entender, a partir de um humor bizarro e culposo, a precarização da condição humana como um recurso para o desenvolvimento de uma tônica crítica e do arrebatamento necessário à Literatura.


Dicas do Mês

Capa do livro Pra quando você acordar, de Bettina Bopp, publicado pela editora Planeta. Seu fundo é branco e ela é composta por várias pequenas pinceladas na vertical, variando entre os tons de azul e verde e, em um pequeno espaço, amarelo. Com exceção do nome da editora, que se encontra no canto inferior esquerdo da capa, todas as palavras presentes estão inseridas em uma caixa de texto branca. No canto superior direito está o nome da autora na cor azul, seguido da palavra “Pra” escrita em verde. Abaixo, “quando” está escrito em azul escuro, seguido de “você” em verde e “acordar” em roxo. No canto inferior direito, está escrito “Crônicas de” na cor azul escuro, seguido de “saudade e espera”, na mesma formatação.
“O tempo se encarrega de botar as nossas dores em prateleiras cada vez mais altas, mas elas sempre estarão conosco” (Foto: Planeta)

Bettina Bopp – Pra quando você acordar (320 páginas, Planeta)

Pra quando você acordar é sobre dois irmãos e uma história que, depois de um acidente, precisou se reinventar. Itamar, irmão da escritora e professora Bettina Bopp, ficou em coma por quinze anos. Durante esse tempo, entre a dor de uma perda que se tornava mais palpável a cada dia e a expectativa de que aquele ente querido pudesse acordar a qualquer momento, Bettina escreveu crônicas contando tudo aquilo que gostaria de dizer a ele, e todas elas foram reunidas nesta obra.

Você não vai acreditar”, mas esse livro é um lembrete de que estamos vivos, ainda que foi feito para uma pessoa que estava dormindo e que dormiu por muitos anos. Delicado e sensível, diz respeito ao circuito de afetos de uma família que descobriu que o amor pode continuar pulsando sem que seja sustentado pela reciprocidade a partir do momento em que é amparado pela reinvenção e pela despossessão. – Raquel Freire


Capa do livro O Veredicto/Na Colônia Penal, de Franz Kafka. A capa é branca, o nome do autor está escrito no topo, em preto e letras grandes. Embaixo, há o nome do livro, em letras menores. No centro da capa, há um quadrado branco com riscos pretos quase o completando totalmente. Abaixo do quadrado há escrito em preto “Tradução de Modesto Carone” e, por fim, a logo e nome da Editora Companhia das Letras.
“Vamos deixar de lado os amigos. Para mim, mil amigos não substituiriam meu pai” (Foto: Companhia das Letras)

Franz Kafka – O veredicto / Na colônia penal (66 páginas, Companhia das Letras)

Em O veredicto / Na colônia penal, livro de contos kafkiano publicado pela Companhia das Letras, os temas centrais são a relação paterna e o falho sistema penal. Na primeira novela, O veredicto, os personagens principais, Georg e seu pai, protagonizam uma série de acontecimentos quase absurdos.

Kafka evidencia que a relação entre pai e filho pode ser baseada em diversos aspectos, um assunto muito recorrente em suas obras. Nesse caso, a inveja e o desprezo paterno presentes na obra soam um pouco pessoal demais para o autor, com exceção do momento em que o pai de Georg ordena que ele se jogue no rio. E o filho o obedece.

Já em Na colônia penal, o senso de justiça é o principal aspecto explorado. Sob o ponto de vista de um observador, narra-se a condenação de um indivíduo que se quer sabe o porquê de estar ali. O espetáculo formado a partir de sua tortura dura meio dia e serve como crítica a um sistema judiciário falho, injusto e criminoso. – Amábile Zioli


Capa do livro A Biblioteca da Meia-Noite. O fundo dela é preto, e há diversos livros organizados como em uma estante, todos em tons verdes, por toda a capa. De cima para baixo, temos o nome do autor, Matt Haig, em tamanho menor. Abaixo, há o título “A Biblioteca da Meia-Noite”. Nos vãos das estantes, temos, de baixo para cima, escrito “MAIS DE 2 MILHÕES DE EXEMPLARES VENDIDOS NO MUNDO”, “BEST SELLER DO NEW YORK TIMES” e “VENCEDOR DO GOODREADS CHOICE AWARD”
“É uma revelação e tanto descobrir que o lugar para onde você quis fugir é exatamente o mesmo lugar de onde fugiu. Que a prisão não era o lugar, mas a perspectiva” (Foto: Bertrand Brasil)

Matt Haig – A Biblioteca da Meia-Noite (308 páginas, Bertrand Brasil)

Nas noites solitárias em que estamos mergulhados nas indecisões e incertezas de nosso próprio destino, mora em nós uma curiosidade perturbadora: e se eu vivesse outra vida? Como seria minha realidade se eu tivesse feito outras escolhas? Em A Biblioteca da Meia-Noite, acompanhamos Nora Seed afundar-se nestas interrogações e, rodeada de decepções colecionadas em sua vida, colocar um ponto final em tudo. 

Diferentemente do roteiro que Seed criou em sua mente, a narrativa surpreende ao colocá-la no centro de todas as possibilidades: entre a vida e a morte, a protagonista se depara com prateleiras de livros intermináveis, que são, na verdade, todas as respostas e rumos que ela poderia ter tomado em sua vida. Seu maior desafio é encontrar um motivo para continuar, vivendo cada uma dessas vidas como se, de fato, fosse a sua.  – Clara Sganzerla


Capa do livro Tubarão, de Peter Benchley. Centralizado na capa há o título em vermelho e o nome do autor em branco, na imagem de fundo vemos um corte vertical na coluna d'água do mar, uma mulher nada na superfície, acima dela a capa tem a cor branca e apresenta o nome da editora, abaixo o azul do mar, onde se encontra um grande tubarão com as mandíbulas abertas como se fosse emergir e atacar a mulher
Tubarão nós faz sentir o medo ancestral dos grandes animais predadores (Foto: Darkside)

Peter Benchley – Tubarão (320 páginas, Darkside)

Na pacífica cidade de Amity, na costa leste dos Estados Unidos, todos aguardam ansiosamente o verão, mas algo vindo das profundezas trás terror e conflito para todos os personagens de Tubarão. Fonte de um dos grandes blockbusters do Cinema, o romance de Peter Benchley continua atual ao tratar de temas como a insensibilidade e negacionismo de políticos quando a ciência atrapalha seus objetivos.

Após um brutal ataque de tubarão-branco a uma turista em uma das praias da cidade, o chefe de polícia, Martin Brody, quer o fechamento do balneário até que as investigações sejam concluídas. Pressionado pelos interesses econômicos de alguns empresários da cidade, o prefeito Larry Vaughan se recusa a seguir o bom senso e acatar as recomendações de seu policial, ordenando o início de uma longa caçada ao animal. Tubarão é um best seller com altas doses de suspense e terror, e um forte senso de aventura. – Guilherme Dias Siqueira


Capa do livro Pílulas azuis. Na imagem estão as ilustrações de Peeters e Cati. O casal está sentado em um sofá marrom que flutua em um mar azul. Ela tem cabelos pretos curtos e veste camiseta laranja com calças azuis. Ele tem cabelos pretos e curtos, usa óculos e veste uma blusa azul com calça laranja. O restante da capa é um laranja sólido. Acima dos personagens o nome do livro e do autor estão grafados em branco
Sob a delicadeza das ilustrações, Pílulas azuis embarca na beleza e no cuidado de amar (Foto: Editora Nemo)

Frederik Peeters – Pílulas azuis (208 páginas, Editora Nemo)

Protagonizada pelo próprio autor, Pílulas azuis é uma história em quadrinhos desenvolvida por Frederik Peeters. Chegando no Brasil 14 anos após sua primeira publicação, a obra explora os desafios de Peeters e Cati, que é seu par romântico e uma mulher soropositiva. Entre tabus e medo, o casal escolhe seguir suas jornadas juntos e procurar um jeito de fazer com que o vírus do HIV não seja capaz de desmontar um relacionamento com tanto amor. Assim, as respostas se desenrolam em consultórios médicos e, enquanto desmistificam estereótipos, os dois se dissolvem em  sensibilidade e bom humor. 

Além de tratar a temática com leveza, o destaque do livro fica para a dualidade de sentimentos dos personagens e como isso é transmitido de forma metafórica, trazendo até mesmo animais que se humanizam para guiar o âmago dos personagens. Com tradução de Fernando Scheibe, a HQ mistura elementos engraçados e dramáticos para mostrar os outros ângulos pelos quais a vida pode ser vista. Atravessando as cores dos impasses, Pílulas azuis prova que positivo é lutar pelos grandes amores. – Jamily Rigonatto


Capa do livro Era dos Extremos. Toda a capa é preenchida por diversos quadrinhos coloridos que ilustram alguma figura histórica. Ao centro, com um fundo vermelho, está escrito o nome do autor “Eric Hobsbawm” com letras da cor branca. Logo abaixo, aparece o título do livro “Era dos Extremos”, também na cor branca, e, mais abaixo, está escrito “O breve século XX” e “1914-1991” com letras da cor branca. Na parte inferior central da capa, está o selo da editora Companhia das Letras.
Eric Hobsbawm é um ótimo anfitrião para uma festa cujo principal convidado é o olhar crítico (Foto: Companhia das Letras)

Eric Hobsbawm – Era dos Extremos (632 páginas, Companhia das Letras)

Em Era dos Extremos, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, Eric Hobsbawm recorda os principais eventos que marcaram o século XX e traça raciocínios pertinentes os quais não cedem à esfera meramente informativa. Por conseguinte, a obra pode ser tanto um material didático quanto um livro de cabeceira indispensável aos que desejam refrescar a memória e revitalizar o futuro.

Era dos Extremos é, sobretudo, um apanhado dos principais episódios compreendidos entre a 1º Guerra Mundial e o fim da União Soviética. Eric Hobsbawm imprime sua subjetividade ao utilizar uma linguagem envolvente a qual revela a essência política de suas análises. No fim, o livro se consagra como um clássico ao oferecer novas perspectivas sobre o âmbito histórico cuja principal característica é a maleabilidade, ou seja, o desejo insaciável por mudanças que não visam o rigor, mas a honra crítica. – Ana Cegatti


Serpentário te convida para um passeio místico e horrendo em um cenário real brasileiro (Foto: Intrínseca)

Felipe Castilho – Serpentário (368 páginas, Intrínseca)

Com traços de H.P. Lovecraft e Robert W. Chambers”, Serpentário é o nosso clássico de ficção e fantasia em solo brasileiro. Na narrativa, todo ano os jovens Hélio, Mariana e Caroline religiosamente deixavam seus lares na capital paulista e desciam a serra para encontrar o caiçara Paulo. No réveillon de 1999, algo mais estranho do que o bug do milênio aconteceu: o grupo foi parar na mística Ilha das Cobras e, anos depois, o que aconteceu lá ainda é um borrão para os que retornaram. Resta revisitar a ilha para desvendar seus mistérios.

Indicado ao Prêmio Jabuti como Romance de Entretenimento em 2019, Felipe Castilho é mestre em mitologias e, depois de A Ordem Vermelha, traz a fantasia para terras caiçaras. Portando-se como um verdadeiro personagem – talvez, o mais importante de Serpentário – a Ilha das Cobras real não é de longe tão obscura quanto o autor a retrata, mas, na obra, é um recanto de misticismo, curiosidade e terror que deixa qualquer um com a cara enfiada nas páginas.

Páginas essas bem pensadas. Como uma metalinguagem, os mistérios ultrapassam a trama para se imporem no papel (literalmente) e dão ao leitor ainda mais o que desvendar. Mesclando referências da cultura pop à bagagem de horror e aventura, até o folclore brasileiro tem espaço, em uma leitura envolvente e tão hipnotizante quando o segredo que ronda a ilha. De cabo a rabo, a fantasia nacional em seu auge. – Vitória Gomez


Capa do livro Oi, sumido. No centro da capa, temos o nome da autora Dolly Alderton em fonte rosa. Abaixo, temos o desenho de uma mulher deitada de barriga para baixo, segurando o celular com uma das mãos e de pernas levantadas para cima. Abaixo, temos o nome do livro, Oi, sumido, em fonte esbranquiçada. A imagem e o texto estão desenhados sob um fundo azul esverdeado. No canto superior direito, temos um selo de fundo amarelado e letras vermelhas com o escrito “autora de tudo que eu sei sobre o amor”. No canto superior esquerdo, temos o logotipo da editora Intrínseca em preto e rosa.
Tudo que eu sei sobre o amor, livro de estreia de Alderton, fez tanto sucesso que foi adaptado para uma série de mesmo nome da BBC, escrita pela própria autora (Foto: Intrínseca)

Dolly Alderton – Oi, sumido (416 páginas, Intrínseca)

Para Nina Dean, os trinta anos não poderiam ter chegado em melhor forma: carreira bem sucedida, amigos e familiares que a amam, entre outras vantagens. Nesse sentido, era de se esperar que a relação com Max também fosse dar bons resultados. Ambos se conhecem em um aplicativo de relacionamento, têm química e gostos em comum. Tudo parece bem, até o dia em que ele para de responder suas mensagens. 

Depois de ver seu trabalho ganhar o mundo na forma do best-seller internacional Tudo que eu sei sobre o amor, Alderton volta ao mercado literário com seu novo livro Oi, sumido. Além de oferecer ao público uma divertida leitura de comédia romântica, a autora também nos traz novas e interessantes perspectivas sobre o amor no século da tecnologia e dos aplicativos de relacionamento, que parecem estar cada vez mais tornando-o insular. – Nathan Nunes

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