Vitor Evangelista
Para alguém que sempre odiou a própria expressão de gênero e a maneira com que se comporta, assistir We Are Who We Are foi um alívio. Quase um fardo sendo descarregado, eu respirava aliviado pelo menos uma hora na semana, momento em que os longos episódios da criação de Luca Guadagnino tomavam parte. Junto dos jovens habitantes de uma base militar italiana, revisitei o Ensino Médio, os julgamentos e as cobranças da adolescência e os corações partidos. Acima de tudo, enxerguei em Fraser (Jack Dylan Grazer) um espelho do que sempre quis ser, ou melhor, assistir.
Minha adolescência não foi privada de liberdade, muito pelo contrário. Sinto que vivi muito do que a série retrata, as celebrações e medos, as festas e choros. Em momento algum me senti encarcerado pelo mundo enquanto crescia e me formava, mas o ó do borogodó de WAWWA (e o que me deixava mais sensível que o comum) foi a maneira como a arte transferiu o material ‘bruto’ da vida real para dentro da televisão. Foi uma releitura, auto imposta, reveladora e pungente.
Ao fim de Right Here Right Now VIII and Last, Luca Guadagnino exprime seu desejo para com a produção: ‘quero que as pessoas amem e queiram ser amadas’, é o que revela no vídeo que sucede o capítulo, mostrando os bastidores com pequenos depoimentos dos atores. Amar e ser amado, experienciar a liberdade na mesma moeda do desejo. Amar e ser amado, conceitos aparentemente simples, que o diretor e roteirista fixa na mente quando constrói e desconstrói os preceitos comuns desse tipo de produção ‘adolescente’.
Escrevo adolescente entre aspas simples por um único e solitário motivo: não acredito que We Are Who We Are seja uma série necessariamente feita para esse público alvo. A produção trata da juventude, isso é óbvio, mas o conjunto de sua abordagem e tato narrativo se aproxima do agrado da audiência adulta. Mais acostumada com o paladar amargo da série, que ama lacunas temporais não preenchidas e deixa muito nas entrelinhas. Até o dia de exibição da série, nas segundas da HBO, abre mão do formato mais palatável das produções de domingo da emissora, em sua maioria digeríveis e cronologicamente mais simples.
E olha que WAWWA não é nenhum bicho de sete cabeças. O drama é consciente da história que quer contar desde o primeiro minuto do piloto, Right Here Right Now I. Situada numa base militar estadunidense na Itália, a série foca nas descobertas do jovem Fraser, um magrelo bicudo e ligado no 220, que vive uma Guerra Fria unilateral com a mãe Sarah (Chloe Sevigny). Ela é a nova comandante da base, e já chega chegando. Com a promessa de se diferenciar do antecessor, a soldado cultiva uma relação constantemente constrangedora de ser assistida com a esposa Maggie (a deslumbrante Alice Braga).
Desse trio, nascem os melhores momentos do íntimo do seriado. Jack Dylan Grazer brilha muito no papel do adolescente mais encardido e insuportável da grade americana de televisão. É claro que Guadagnino e o time de roteiristas escrevem o loirinho propositalmente chatonildo e implicante, e é justamente prazeroso acompanhar os ataques de pelanca que o jovem ator encena semanas à dentro. Interessante também para Grazer cair de cabeça num personagem tão diferente de seu currículo recente, que figurava o papel de Eddie na franquia It e Freddy, o melhor amigo do Shazam.
O casal Sarah e Maggie recebe menos atenção do que deveria, mas as atrizes são sublimes nas nuances e em nos fazer acreditar que assistimos duas pessoas juntas e íntimas há tantos anos. Chloe Sevigny, a chiqueza em pessoa, é dura e fria, o que congela a doçura de Alice Braga. A personagem da brasileira guarda muito para si, e ocasionalmente assente, com um sorriso de canto de boca que diz muito sobre como a soldado sabe policiar as próprias ações e dizeres. É uma pena que vemos tão pouco de seus tons camuflados e dotes culinários.
Caminhando pela pacata vizinhança, damos de cara com a família de Caitlin (Jordan Kristine Seamón). É esse o núcleo mais dolorido de WAWWA, e também o que mais parece deslocado da produção. Poucos sabemos dos temores da mãe Jenny, papel afetivo de Faith Alabi, uma personagem muito ressentida e silenciada. O irmãos mais velho Danny (Spence Moore II) flerta com a religiosidade da violência e promete mais do que o seriado se propõe a cumprir. O trabalho do rapper Kid Cudi interpretando Richard é uma grata surpresa, mas ele vira fantasma das próprias motivações lá pro meio da temporada.
É evidente a tara de Luca Guadagnino para se desprender de explicações exageradas, mas mesmo a mais livre de suas produções poderia respeitar a própria trama e desdobramentos. Os bonés de Richard, estampados com o lema de Trump aparecem no começo e logo somem de cena, tornando essa ‘crítica’ à direita americana vazia e por vezes gratuita, sem tentativa de aprofundar as motivações do personagem. Em 2020, quem muito bem ressignificou o escrutínio ao ex-presidente americano e seus apoiadores negros foi Spike Lee, no sadio Destacamento Blood.
Outro capricho de roteiro que fica à deriva é a relação entre Fraser e sua mãe. Os ataques violentos e o comportamento incomum do garoto levantaram debates sobre autismo ou alguma síndrome do tipo, mas a equipe de roteiristas optou por não tocar mais no assunto, levando Fraser apenas a comentar no último episódio que ressente Sarah por ela não ter envolvido o pai do garoto em sua vida. Não sabemos se Guadagnino preferiu guardar essa trama para uma eventual segunda temporada, mas que foi golpe baixo subir os créditos sem discutir diretamente o assunto, isso foi.
Luca Guadagnino acerta em cheio é no tratamento das descobertas de Cate, ou Harper, como preferir que nós chamemos. A personagem é quem mais cresce ao longo de We Are Who We Are, sentindo tudo que pôde sentir. A atriz conquista com o olhar, e sempre mantém suas reais intenções e reações escondidas do grande público.
Ao passo que Fraser faz birra e bate o pé, Cate prefere ler o ambiente antes de se expressar. No fim das contas, a personagem era a única que não ‘precisava’ de uma conclusão em seu arco. Quando trabalhamos e assistimos questões de gênero e expressão, não existe resposta certa ou final. A jornada é muito mais importante que qualquer conclusão, que na vida real pode ser que nunca chegue.
E as jornadas dos personagens que rodeiam o duo convergem no quarto episódio, quando a série pisa no freio e captura com primazia uma festa afastada da narrativa principal. Sufocados pelos pais e pelo ambiente da vila militar, os adolescentes viajam até uma casa periférica, desabitada por hora. Right Here Right Now IV se certifica de celebrar os medos deles, que bebem e se beijam, deixando o amanhã o mais longe possível. É nesse agitado e importante capítulo, também, que We Are Who We Are assina um contrato implícito com sua audiência: a cláusula da morte.
Manobra comum na TV, quando um personagem recebe muito destaque e louros antes de um momento decisivo, significa que ele vai morrer. The Walking Dead é mestre em fazer isso, brilhando seus sobreviventes antes de jogá-los do precipício. Em WAWWA, no segundo que Craig (Corey Knight) foi convocado, se casou e os amigos aproveitaram pra nadar pelados, a série tirou sua vida. Mas, sábio que só, Luca Guadagnino usa do silêncio para chocar o público e, inevitavelmente, entrar em concordância e paz com o que consentiu alguns episódios atrás.
O episódio sete é o luto da série. Britney (Francesca Scorsese) chora desolada, Danny reage com ódio e Valentina (Beatrice Barichella) perde o chão. A própria câmera perde o rumo, a população da vila sofre e reza, enquanto a montagem pisca quadros de cada indivíduo em sofrimento. A trilha sonora dorme, chuviscando a memória de Craig e o impacto de ausência para aqueles adolescentes de 17 anos que, sozinhos como só eles sabem ser, encontram nos amigos o laço familiar mais forte que existe.
Guadagnino guardou na montagem da série o congelamento de algumas cenas, o que no começo pareceu erro do arquivo do vídeo, depois passou por uma apurada explicação do criador. Foi a maneira que o italiano encontrou de parar o tempo dos personagens, registrar e apreciar pequenos acontecimentos nessa fase da vida que passa tão rápido. Quem dera se esse recurso fosse traduzível ao mundo real, quantos detalhes nós mesmos travaríamos, pra ver e rever. A princípio, ele imprimiu a técnica apenas no núcleo jovem, mas acabou espelhando numa cena entre Sarah e Maggie, expandindo o conceito de paralisar para aproveitar.
Fora os truques na sala de edição, a série enriqueceu a mensagem artística no figurino dos personagens. Fraser é dono de uma coleção de invejar as passarelas europeias, e suas roupas foram o elemento chave para expressar ideias e sua mente atormentada. Eram japonas enormes, coletes coloridos e peças incomuns de serem vista num ‘guarda-roupa masculino’. Aliado às unhas pintadas, os modelitos do garoto marcam o olho bom de Guadagnino para como a arte é expressa e difundida nos mínimos detalhes e no subentendido.
A trilha sonora, em parte composta por Blood Orange e também curada pelo artista, reúne o melhor do pop, rap e R&B. Blood Orange desempenha o papel que Sufjan Stevens teve em Me Chame Pelo Seu Nome, alastrar sua voz artística, assim passando a mensagem através das canções. Os álbuns, tanto de Trilha Sonora quanto de Trilha Original, são cheios de atitude e poder, além de apresentar para o grande público cantores não tão ouvidos. Um famoso que toca toda hora é Frank Ocean e sua bíblia Blonde, que no fim das contas, descreve com maestria as dores de Fraser, apaixonado por um amor proibido e errado.
O gelo fino de We Are Who We Are acaba sendo onde Luca Guadagnino desenvolve com mais perspicácia a persona do adolescente protagonista. Sua paixão unilateral por Jonathan (Tom Mercier) dita o tom da narrativa e movimenta a maioria das motivações do menino, mas a abordagem é calculada. Fraser tem 14 anos e o ator tem 17, enquanto tanto Jonathan quanto seu intérprete já estão na casa dos trinta. O diretor, indo na contramão do que desenvolveu em Me Chame Pelo Seu Nome, nunca nem cogita um enlace romântico entre as duas partes.
Ele insinua, é claro, a tentação. Admirador das estátuas e esculturas greco romanas, Guadagnino usa Jonathan como a vitrine do belo, com sua primeira cena já sendo um nu frontal que revela o tato do diretor por representar o corpo masculino numa ótica de erotismo e desejo. A nudez em We Are Who We Are rima, concomitantemente, com força e vulnerabilidade, nunca fragilizando ou diminuindo a forma humana in natura.
A série discute mais uma porção de assuntos e temas relevantes, o que por si só já dariam textos próprios. O importante, no fim das contas, é aquele pensamento que Luca expressou logo nos bastidores do final da temporada, e por enquanto, da produção. Ele queria amar e ser amado, brincando com as brisas italianas, os lagos escuros e os jovens que se beijam e choram sem saber o porquê. Sensorial como sempre e mais sensível que de costume, Luca Guadagnino imprime em We Are Who We Are sua marca maior: a de que o amor não é simples, mas ainda deve ser encarado de frente.