Eduardo Rota Hilário
Sucesso, fama e uma multidão de fãs. Se a abertura contagiante do documentário Tina parece dimensionar muito bem a figura de Tina Turner, verdadeira lenda do rock’n’roll, poucos minutos são necessários para que surjam pontos contrastantes em relação a esse clima festivo. Decerto, são as dores dessa artista mundialmente venerada que protagonizam, na maior parte do tempo, a narrativa de um filme honesto, memorialístico e quase melancólico. Dividido em cinco partes, o longa-metragem dirigido e roteirizado por Daniel Lindsay e T.J. Martin é uma boa escolha para quem se despede da vida pública.
Levando em consideração que criar um gran finale para uma carreira longa e próspera não é tarefa fácil, alguns acertos desse desafio sem dúvida merecem destaque. No caso de Tina, fixar indiretamente o amor como centro de um enredo extremamente delicado, com diferentes pontos de vista, é uma decisão admirável. Seja através da ausência, marcada na confissão “quase nunca recebi amor em minha vida” – nem mesmo dos próprios pais, que abandonaram a cantora logo cedo -, seja através da conquista, quando ela conhece o atual marido, Erwin Bach, o amor é peça essencial – e, muitas vezes, implícita – em todos os acontecimentos da vida de Tina Turner.
Por outro lado, uma centralidade também fundamental à história que se quer contar são os traumas vividos pela artista. Nesse aspecto, o documentário se aproxima de outras produções recentes, como o emocionante Gaga: Five Foot Two, de 2017, e o confessional Narciso em Férias, de 2020. A diferença é que, agora, vemos uma produção com maior variedade de fontes, em um conjunto de entrevistas mais ou menos padronizado. Isso contribui para uma melhor organização e dinâmica de relatos sufocantes, que detalham tentativas de suicídio, uma carreira agitada, que tolhe momentos em família, e outros lugares de difícil revisitação.
Mas o ápice dessas angústias é, com certeza, o relacionamento abusivo que Tina vivenciou com o ex-marido Ike Turner, também parceiro musical no começo de sua carreira artística. Responsável por violências físicas, sexuais e psicológicas, Ike é, depois de Tina, a figura de maior destaque do documentário – o que é, no mínimo, irônico, já que a cantora tenta, há anos, se desvencilhar da imagem construída ao lado do antigo companheiro. Para se ter uma noção mais exata, uma entrevista concedida à revista People, em 1981, um livro e um filme não foram suficientes para colocar um fim nessa história. Na verdade, isso tudo somente aumentou a curiosidade da mídia, que nunca perdeu uma única oportunidade de colocar o tema em pauta.
Registrando, no documentário, uma possível versão definitiva desse passado conturbado, Tina Turner não vê a hora de poder parar de falar sobre isso. Afinal, por que não dão maior ênfase e importância ao período em que ela assumiu o controle da própria vida? Ela precisou ir ao tribunal para manter o nome artístico. Mais tarde, em 1984, dominou o mundo com o disco Private Dancer – nas palavras da própria artista, “Tina nunca tinha realmente estreado. Foi a estreia de Tina, e aquele foi o meu primeiro álbum”. Por que dar menos importância a tantas conquistas, preferindo sempre destacar o antigo casamento? São questões dessa natureza que a cantora tenta resolver de vez, antes de sair de cena.
Em essência, o que o longa-metragem realmente busca é recriar o processo de construção de Tina Turner. Com alguma variedade de fontes – embora todas tenham pelo menos uma proximidade mínima com a artista -, além, é claro, dos relatos da própria estrela, busca-se organizar a trajetória de uma vida nada fácil, que serviu de caminho para moldar a cantora tal qual a conhecemos hoje. Resgatando alguns arquivos até então inéditos, Tina pode chover no molhado para antigos fãs, visto que revisita uma história já contada inúmeras vezes. Mas não deixa de ser um filme perfeito para quem ainda está se introduzindo ao universo dessa diva.
De modo geral, um trabalho tão complexo só obteria êxito com uma boa direção. Por isso, não é coincidência que Daniel Lindsay e T.J. Martin – dupla que já recebeu um Oscar de Melhor Documentário por Undefeated, em 2012 – estejam concorrendo a Melhor Direção em Documentário/Programa de Não-Ficção no Emmy 2021. Certamente, de nada adiantaria a ambição de um projeto dessa magnitude se ele fosse desenvolvido de maneira caótica e desorganizada. E se tratando da carreira de um ícone da Música, faz ainda mais sentido que o documentário esteja concorrendo também a Melhor Mixagem de Som em Reality ou Programa de Não-Ficção (Única ou Múltiplas Câmeras).
Já a disputa por Melhor Documentário ou Especial de Não-Ficção parece estar ainda mais acirrada, uma vez que nomes de grande repercussão, como Framing Britney Spears: A Vida de uma Estrela e O Dilema das Redes, também concorrem à categoria. Pode até ser que Tina se destaque pela coesão narrativa, ou por abordar temas urgentes, tal como a violência contra a mulher, mas é cedo para cantar qualquer tipo de vitória. De toda maneira, com essas indicações, a qualidade do longa começa a se revelar inegável. E Tina Turner? Continua sendo simplesmente a melhor.