Os curtas brasileiros do 29º Festival É Tudo Verdade

Os curtas brasileiros ficaram disponíveis gratuitamente na plataforma de streaming Itaú Cultural Play (Arte: Aryadne Xavier)

A 29ª edição do Festival É Tudo Verdade ocorreu entre os dias 03 e 14 de Abril de 2024, com programações que perduraram até dia 30. Entre mostras online e presenciais, o maior evento de reconhecimento às produções documentais exibiu 77 obras de diferentes países e diretores. Além das tradicionais categorias diversas que envolvem o cronograma do festival, este ano, ainda foram celebrados o centenário do brasileiro Thomaz Farkas e as obras do britânico Mark Cousins. 

Mergulhado em uma multiplicidade de temáticas, o evento alimentou o Cinema com uma curadoria recheada de nomes prontos para a ascensão. Imagens delicadas, relatos sensíveis, terras distantes e até mesmo pontos crus demais para o habitual palatável marcaram presença em salas de cinema de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Considerado um dos maiores festivais culturais da América Latina, o It’s All True – nome dado para repercussão internacional – acontece desde 1996 e foi criado pelo crítico de cinema  Amir Labaki. Desde então, sua potência reconhece obras com um júri especializado que as premia em categorias específicas, além de tecer comentários sobre seu impacto social e estético. 

Uma das categorias é a Competição Brasileira de Curtas-Metragens. Em sua composição, filmes de até 30 minutos dirigidos por cineastas brasileiros fazem parte da mostra competitiva. Este ano, racialidade, identidade sertaneja, ancestralidade indígena e outras pautas ganharam protagonismo, com As Placas são Invisíveis levando o título. Com olhar apurado, a editoria do Persona explora as minutagens dos participantes e suas reflexões. 

Curtas-metragens

Foto do filme Aguyjevete Avaxi’i . Na imagem há três pratos de um prato de palha natural com três tipos de milho diferentes sobre ele um tem cor mais escura, o outro média e o terceiro mais claro. Em cima do milho, há uma mão com uma pulseira artesanal no pulso.
O cultivo do sagrado milho indígena carrega técnicas geracionais em cada passo do processo (Foto: Instituto Catitu)

Aguyjevete Avaxi’i (Kerexu Martim, 21′, 2023)

A diretora Kerexu Martim registra a retomada do plantio das variedades do milho tradicional do povo Guarani M’bya – ou “milho verdadeiro”, como eles chamam – na aldeia Kalipety. O cultivo havia se perdido com a degradação da área, consequente de décadas de monocultura de eucalipto. O alimento é considerado uma comida sagrada, deixada por seus ancestrais, por isso, a retomada e preservação da prática é tida como muito importante para manter a memória viva para a geração atual.

Para a cultura do povo Guarani M’bya, o milho indígena é respeitado pelo o que oferece: fortalece os corpos, leva felicidade para o espírito e alegra as crianças. O curta mostra como a aldeia se reúne, desde o plantio até a colheita, com rituais, bênçãos e comemorações em que eles pedem força e coragem para manter o cultivo e sabedoria para não deixar a tradição sumir. – Giovanna Freisinger


A Noite das Garrafadas traz o recorte de um episódio histórico do século XIX e o compara ao século XXI utilizando a vida carioca no centro da cidade como fio-condutor da narrativa (Foto: ClubSoda Filmes)

A Noite das Garrafadas (Elder Gomes Barbosa, 25′, 2023)

Historicamente, a Noite das Garrafadas  foi fundamental para a abdicação do trono de Dom Pedro I. Troca de ministérios, repressão aos opositores do governo e revolta por parte da população são alguns dos motivos que levaram ao estopim que expulsou o monarca do Brasil. O ato obteve participação de escravos e ex-escravos, mostrando os principais indícios de rebelião entre o povo brasileiro acerca do colonialismo português. 

No curta-metragem A Noite das Garrafadas, dirigido por Elder Gomes Barbosa, há um paralelo entre a revolta do século XIX e a vida dos trabalhadores autônomos presentes na Rua da Quitanda, no Rio de Janeiro. Com o uso de projeções, sons e narrações, o cineasta compara a opressão vivida no Brasil Imperial às mazelas do sistema capitalista. Utilizando a sociedade carioca como personagem do curta, Gomes Barbosa evidencia problemas históricos do país que são repetidos e vistos através dos séculos.  – Guilherme Machado Leal


Cena do curta documental Sertão, América. Nela vemos um close em uma mão masculina que está segurando um cacto. A imagem está em preto e branco e ao fundo podemos ver ramificações desse pé de cacto e o céu
Obra comprova a máxima de Euclides da Cunha de que o sertanejo, antes de tudo, é um forte(Foto: Pique-Bandeira Filmes)

Sertão, América (Marcela Ilha Bordin, 18’, 2023)

Desde a época da escola nos é ensinado que o Brasil começa a partir da chegada de Pedro Álvares Cabral, assim como a América se inicia com Colombo ou os outros tantos navegadores que pisaram nesse continente. Recentemente há um movimento que vai contra esse conceito e denominação, mas é com Sertão, América que ele é trabalhado de forma mais singela e próxima de nós residentes desses pedaços de terra.

A obra gira em torno da criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, no coração do Piauí. A diretora Marcela Bordin opta por trabalhar a temática através de quem vive nos entornos da área de preservação e qual o entendimento dessas pessoas sobre sua ancestralidade. A fotografia analógica dá traços de Portinari para a obra e, aliada à narração extremamente bem escrita e pensada, evidencia que, antes de americano, aquele povo foi – e sempre será – sertanejo. – Guilherme Veiga


Cena do documentário Utopia Muda. Na imagem, um homem branco de cabelos escuros observa a instalação da rádio. Ele é fotografado pela câmera a partir dos ombros e veste uma camiseta cinza. Ao fundo, é possível ver uma parte do campus da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp
A Rádio Muda fica localizada dentro de uma caixa d’água na Unicamp (Julio Matos)

Utopia Muda (Julio Matos, 20’, 2023)

Narrativas sobre democratização já foram contadas várias vezes por diversas lentes e perspectivas diferentes. Em Utopia Muda, no entanto, o registro da história da Rádio Muda – meio de comunicação livre operado no interior de uma caixa d’água na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp –, traz um frescor graças ao fato de ilustrar a coletivização de uma forma tão palpável.

Com o auxílio do acervo pessoal do diretor Julio Matos, três décadas de funcionamento sem o reconhecimento do Estado são expostas como uma ferramenta de atuação eficaz pela defesa da liberdade de expressão. Diante de suposições sobre a criação da rádio, entre elas, até mesmo a possibilidade de ameaça ao tráfego aéreo, o documentário resgata e evidencia a atemporalidade de um instrumento democrático desenvolvido dentro do espaço público acadêmico. – Nathalia Tetzner


 Cena do curta-metragem A Edição do Nordeste. Preto e branco. Três homens, virados de frente para a câmera, vestem trajes característicos do cangaço, inclusive chapéus, cintas de couro no peito e lenços de seda no pescoço
A imagem cultural do Nordeste e do povo nordestino que o resto do país reconhece saiu das telas de cinema (Foto: Casa da praia filmes)

A Edição do Nordeste (Pedro Fiuza, 20′, 2023)

Inspirado no livro e peça A Invenção do Nordeste, o diretor Pedro Fiuza reedita cenas de 28 longas e curtas brasileiros, de 1938 a 1980, de grandes cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirszman. Essa lista é composta por obras que retratam o Nordeste sob diferentes aspectos e que foram essenciais para a fundação do imaginário da região e do seu povo. 

“Para inventar uma região, é preciso inventar uma cultura – de preferência com ajuda do cinema”, diz parte da sinopse do curta. Através de recortes de filmes, Fiuza reflete sobre e critica o papel que o cinema cumpriu, e ainda cumpre, no processo de construção da identidade nordestina. A Edição do Nordeste destaca como a opressão vem também através da generalização, no caso, perpetuando arquétipos sociais que restringem um povo diverso a estereótipos, através de imagens como a do sertanejo, do cangaceiro e do cabra-macho. – Giovanna Freisinger


Cena do curta documental Até Onde o Mundo Alcança. Nela vemos um homem branco de barba e cabelos brancos. A câmera está próxima de seu rosto, que está de perfil. Ele olha para cima e em sua cabeça há um fone estilo headset com fio na cor preta, da marca Sony, visível em seu tampo. Ao fundo, árvores secas e um céu nublado.
Até Onde o Mundo Alcança fez sua estreia no Festival de Clermont (Foto: Jan Van Eyck Academie)

Até Onde o Mundo Alcança (Daniel Frota de Abreu, 27’, 2024)

A história do Brasil é um telefone sem fio. Nosso processo de criação não nos foi assimilado, mas, sim, imputado a partir de forças maiores, mais autoritárias e sanguinárias. Gravado principalmente na Holanda, Até Onde o Mundo Alcança passa o pente fino no processo de colonização brasileira, em especial da região de Pernambuco, e se transforma em uma metáfora que documenta o modo de documentar.

A produção acompanha um ornitólogo que busca por canto de pássaros em uma região devastada por uma mineradora e um grupo de etnobotânicos que estudam a fauna pernambucana durante a invasão holandesa de Maurício de Nassau e os efeitos do colonialismo na história brasileira e na forma como ela foi representada. Misturando o estilo documental com o ficcional, o diretor cria uma atmosfera única e poética que evoca o questionamento se realmente sabemos quem somos e de onde viemos. – Guilherme Veiga


 Cena do documentário Serão. Na imagem, um homem de cabelos escuros está sentado de lado para a câmera que, por sua vez, também captura a costa de uma mulher. Ao fundo, é possível ver uma parte de uma residência bem simples
A extração manual de cal é uma atividade considerada insalubre em grau médio para o trabalhador (Foto: Caio Bernardo)

Serão (Caio Bernardo, 15’, 2023)

Serão, curta-metragem dirigido por Caio Bernardo, consegue refletir uma realidade, infelizmente ainda inata a grande parte dos brasileiros, através da perspectiva de uma família localizada no Cariri paraibano. Realizar esse feito é difícil – ainda mais em poucos minutos – porém, Bernardo tira de letra ao se aprofundar em um cotidiano marcado por trabalho árduo e a esperança de dias melhores. 

O ambiente que o documentário escolhe como registro acaba funcionando como um microcosmo da sociedade em que vivemos. Alternando entre a prática secular e perigosa da extração manual de cal, e as investidas da indústria têxtil, Serão faz o telespectador refletir sobre o quanto as promessas de trabalho realmente proporcionam novas perspectivas, ou apenas ajudam a nos acorrentar em um ciclo vicioso de tentativas de subverter a máquina cruel que move o mundo capitalista. – Nathalia Tetzner


Para invisibilizar alguém não é preciso que as linhas sejam palpáveis (Foto: Gabrielle Ferreira)

As Placas são Invisíveis (Gabrielle Ferreira, 24′, 2024)

Pertencente a competição brasileira de curtas-metragens da 29ª edição do Festival É Tudo Verdade, As Placas são Invisíveis explora uma exclusão social secular: a falta de estudantes negros na universidade pública. A produção nacional dirigida por Gabrielle Ferreira traz como protagonistas cinco jovens mulheres negras e seu embate por permanência em uma das instituições mais prestigiadas e embranquecidas do Brasil, a Universidade de São Paulo (USP) 

O filme foi gravado em 2015 e carrega muito da luta acerca das cotas raciais em seu contexto, já que a visível integração de pessoas negras na universidade vinha incomodando a confortável posição elitizada e era pauta recorrente na luta do movimento estudantil. Além disso, as meninas ouvidas são parte desse incômodo por estarem lá através da política aprovada dois anos antes, a Lei de cotas.

Apesar de urgente e bem afirmada, não é só na temática que vive a glória da produção. A escolha de imagens que intercalam as personagens expondo suas vivências e elementos estruturais do espaço, criando a alusão com placas físicas e metafísicas, completa a narrativa quando se trata de composição. Sob a ótica singular e o relato sensível de quem segue tendo que lutar o dobro ou o triplo por uma formação, As Placas são Invisíveis mostra que a segregação racial no âmbito acadêmico é enraizada como uma tradição. – Jamily Rigonatto


A lástima encontra a beleza num campo de papoulas onde a natureza encontra a luta sob a bandeira palestina (Foto: Carlos Adriano)

Nem Todas as Flores da Falta (Carlos Adriano, 22′, 2024)

Mesclando poesia ao horror de uma guerra incessante, Nem Todas as Flores da Falta é uma produção poética-política-experimental em que Carlos Adriano explora os detalhes escondidos em meio à destruição. Dor, morte e sofrimento são entremeados por intervenções artísticas, floridas e ilusórias. O diretor nos deixa entre Gaza e Israel, no caminho onde a poesia transforma tristeza em beleza, sem esquecer do horror. 

É um filme atual, contextualizado, mas que se torna indigesto. Ao levar flores ao desespero de Gaza, Adriano bombardeia o espectador com horror e repentinos atos de suavidade. Embora apresente uma perspectiva que referencia grandes nomes da sétima arte, colocar flores como testemunhas da fúria israelense também altera seus perfumes, envenenando-as com o cheiro do horror. Afinal de contas, o curta explora o inóspito, fragmentando-se a cada passo num cenário de Guerra. – Ágata Bueno 

 

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