Nathan Nunes
AVISO: Este texto contém spoilers
Beef, episódio que marca o retorno de The Bear, abre com Marcus (Lionel Boyce, de Hap and Leonard) tomando conta da mãe acamada em um hospital. Seus gestos são pequenos, mas simbólicos. Uma toalha molhada na testa da senhora, para abafar o calor. O esforço em contar sua rotina para mantê-la informada. Tudo isso sem obter reações, pois, para o confeiteiro, pouco importa a recompensa. Ele se contenta fazendo o que pode e, dessa forma, encontra um propósito. A cena pode parecer simples, mas carrega as principais temáticas que permeiam toda a segunda temporada: o cuidado, a sutileza e a humanidade.
Para a equipe do restaurante, antes chamado The Beef e agora rebatizado com o nome da série, a situação não está nem um pouco fácil. Com o local em reforma, vários problemas de infraestrutura vêm à tona e pequenas inspeções de rotina, como um simples teste do sistema de supressão de incêndio, ganham um forte peso dramático. Enquanto isso, algumas mudanças ocorrem na hierarquia dos cozinheiros. Carmy (Jeremy Allen-White, de Shameless) passa a Sydney (Ayo Edebiri, de Big Mouth) o posto de chef principal. A jovem, por sua vez, escolhe Tina (Liza Colón-Zayas, de In Treatment) para ser sua sous chef, em uma cena marcada por um abraço tocante das duas.
A reestruturação é sentida na série conforme os personagens são separados e desenvolvidos individualmente. Alguns continuam dividindo espaço com as demais tramas, como Ebraheim (Edwin Lee Gibson, de Lakers: Hora de Vencer) e Tina, que são enviados a uma escola de alta gastronomia e processam a experiência de forma diferente um do outro. Ele tem dificuldades de se adaptar, enquanto ela está vivendo um sonho – seu sorriso ao finalmente segurar a faca de Carmy é doce e apimentado, no melhor estilo da personagem.
Outros membros já recebem um destaque particular, em episódios que parecem histórias paralelas à narrativa principal. É o caso de Richie (Ebon Moss-Bachrach, de The Dropout) e Marcus, mandados, respectivamente, ao restaurante de três estrelas Michelin, Ever, em Chicago, e a uma espécie de intercâmbio culinário em Copenhague. A partir dessa escolha, ambientes e estruturas completamente novas são exploradas, seja no funcionamento quase cirúrgico do restaurante, ou nas ruas iluminadas da capital dinamarquesa.
Em sua primeira temporada, The Bear ficou marcada, imageticamente, por traduzir a ansiedade da cozinha com montagens intensas, design de som barulhento e uma movimentação sempre caótica dos atores pelos cenários. Todas essas técnicas continuam aqui, até mesmo com mais fôlego do que antes. O episódio Sundae, por exemplo, utiliza mais de um clipe agitado para mergulhar o público no psicológico de Sydney, conforme ela passeia por Chicago e coleta ideias para o novo menu do restaurante. O take final a captura deitada e cansada sob a mesa, uma imagem sublime.
Entretanto, sob o comando de Joanna Calo (Hacks, Treta) e do também showrunner Christopher Storer (Bo Burnham: Make Happy), a direção busca menos estilo e mais sutileza, com uma câmera que valoriza os respiros entre as cenas. O segundo episódio, Pasta, ilustra bem essa linha, através do reencontro de Carmy e Claire (Molly Gordon, de Shiva Baby), uma antiga paixão do passado. Com a decupagem sintetizada no tradicional jogo de plano e contraplano, os closes repousando sobre seus rostos e a bela Strange Currencies da banda R.E.M ao fundo, o momento consegue reacender um interesse adormecido, utilizando apenas o básico da linguagem audiovisual.
Essa sutileza ressalta também os gestos de cuidado entre os personagens. O cuidado de Carmy em utilizar o sinal de “me desculpe” em ASL (língua de sinais americana) para manter a comunicação com Sydney no caos da cozinha. O cuidado da própria jovem em fazer um omelete para uma faminta e estressada Natalie (Abby Elliott, de Star vs. As Forças do Mal). O cuidado no atendimento que transforma Richie, de um homem petulante e mesquinho para um soldado sempre a postos para o cliente, e também para quem precisar.
A sutileza, porém, também revela medos e traumas, da mesma maneira que uma reforma de restaurante expõe rachaduras e imperfeições. O medo do fracasso que paira sob Sydney, quase desamparada em boa parte da narrativa. O medo da solidão que assola Marcus, cada vez mais descrente na recuperação da mãe. O medo de um cozinheiro veterano, como Ebraheim, em ficar para trás diante de tantos novos talentos. Por fim, os medos de Carmy, aprofundados durante o intenso e marcante sexto episódio, Fishes.
Situado cinco anos antes dos eventos da série, durante uma ceia de natal da família Berzatto, o episódio mistura sentimentos com um toque agridoce. Mike (Jon Bernthal, de King Richard) está vivo ainda, mas os impactos da depressão já são sentidos por algumas pessoas ao seu redor, vide os atritos com o “tio” Lee (Bob Odenkirk, de Better Call Saul). Richie e Tiffany (Gillian Jacobs, da trilogia Rua do Medo) estão juntos, mas sabemos que não por muito tempo. Além disso, por mais que Carmy esteja presente, ele não está necessariamente em casa, pois sente o peso de relacionamentos tão complicados, em especial o de Natalie com a mãe Donna (Jamie Lee Curtis, de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo).
A série nunca esteve tão precisa em seu alinhamento da forma com o conteúdo. Os closes aprisionam o rosto dos personagens em sofrimento velado, o design de produção transforma quase todos os cômodos da casa em ambientes opressores e a fotografia de Andrew Wehde (Oitava Série) possui uma textura suja e desbotada, trabalhando as cores quentes de um modo desconfortável. O som, por sua vez, se calca no modus operandi da cozinha: gritos, ofensas e panelas ao chão, intercalados com os silêncios das conversas casuais.
É notável a maneira como os problemas da família – falta de comunicação, sentimentos reprimidos, alcoolismo, depressão – transformaram Carmy em um homem quebrado por dentro. A volta de Claire é posicionada pelo roteiro como um meio de evolução para o personagem, que, mesmo relutante de início – chegando ao ponto de entregar um número de telefone falso para ela –, finalmente se vê diante de uma pessoa com quem pode se abrir. Tudo dá certo, até chegarmos à season finale.
Sob o mesmo nome titular, o décimo episódio, The Bear, retoma a tradicional pressão da cozinha, com o restaurante em sua noite de reinauguração. Durante boa parte da rodagem, a câmera assume a qualidade de plano-sequência ininterrupto, tão elogiada na temporada anterior. Tudo aparenta estar de volta aos eixos, mesmo que de forma caótica. Ainda assim, não demora muito para as coisas saírem de controle, pois os talheres começam a faltar, os pedidos se acumulam e, no auge do estresse, Carmy fica preso no refrigerador.
Ao final, Carmy se mostra o único personagem que não evoluiu. O restaurante, Sydney, Marcus, Tina e até Richie, o mais improvável, se transformaram em algo completamente diferente daquilo que conhecemos. Existe demérito nessa involução do protagonista? Por incrível que pareça, não. Em ambas as temporadas, The Bear busca compreender cada um dos cozinheiros com empatia, reconhecendo seus erros e acertos, mazelas e habilidades, entre outros. Para Carmy, falta a sutileza de olhar para si mesmo, e o cuidado de pensar em como suas inseguranças afetam aqueles que ama. Ainda assim, não há nada de errado nisso, pois o chef não é um urso, mas, sim, aquilo que a série mais valoriza: humano.