Vitor Evangelista
É uma pena que o filme mais comedido de Christopher Nolan tenha em sua bagagem a maior negatividade de sua carreira. Longa que, segundo o cineasta, salvaria o cinema depois da pandemia e das salas fechadas, Tenet traga a ingratidão de um realizador ególatra e de um público que já dá o play com desgosto nas entrelinhas. A obra por si só se diverte em tudo que Nolan construiu desde que estourou com Memento, no início do século: o tempo vira gelatina nas mãos e nas lentes do britânico, fascinado pela auto indulgência de sua falsa genialidade.
A personagem de Clémence Poésy até tenta explicar os conceitos de reversão temporal e inversão de ações para o protagonista, papel levado com honestidade e só um tiquinho de canalhice por John David Washington. A cientista loira, todavia, falha no primeiro momento que o soldado a questiona mais a fundo. É então que Christopher Nolan, até o momento ostentando uma ação de primeira qualidade e firulas magnéticas, parece botar o rabo por entre as pernas. “Você não precisa entender, só sentir”, escreve no corpulento roteiro de Tenet.
O filme é complicado, não restam dúvidas quanto à isso. Nolan não solta o osso na hora de embaralhar suas narrativas, seja na amnésia (que não é amnésia coisa nenhuma) da tradução de Memento, ou na maneira como o diretor injetou a megalomania do Coringa no ecossistema quase sedativo do nicho ‘filme de heróis’ em O Cavaleiro das Trevas. Um mestre em ser desgostado, ele nunca pareceu se abalar às críticas quanto à sua visão ou tato artístico, que são traços que afastam a audiência, o cinema de arte sendo vomitado no cinema popular. ‘Gêneros’ esses ridículos por natureza, já que não existe cinema que seja popular ou difícil, existem sim interpretações, níveis de entendimento e camadas.
Tenet é uma cartada de gênio por saber de todo o histórico de banana do realizador. Não existe respiro na sequência inicial, o filme começa antes de sequer conseguirmos nos acostumar com a barulheira que virá a seguir. Nolan, adepto religioso ao som de cinema e à ‘experiência de tela grande’, levou um chute na bunda quando percebeu que o lançamento de seu novo sucesso acabou coincidindo com o coronavírus, que fechou o mundo e, até hoje, não deu margem para uma volta segura aos estofados vermelhos, baldes de pipoca e curtos trailers de filmes que nunca vamos ver.
É fato que várias salas já reabriram e estão exibindo as duas horas e meia de Tenet, com direito à confusão e a gritaria, as frases de efeito soltadas a cada treze minutos e a elegante participação de Michael Caine, que interpreta, bem, um personagem chamado Michael. John David Washington nem esconde o sorriso de ledice quando se despede do eterno mordomo do Batman de Bale. Tenet é recheado desses atores de estimação de Nolan, dessa vez com papéis mais fora do convencional que o costume.
Se Kenneth Branagh passava Dunkirk (2017) inteiro olhando pro horizonte e explicando o que rolava para o resto do elenco, em Tenet ele assume o papel de vilão com sotaque europeu. E aí entra outra tecla que o filme bate tanto que até quebra o teclado: esse filme é uma aventura do James Bond que se esconde de ser uma aventura do James Bond. Fazem tantos anos que petições são assinadas implorando para Idris Elba pegar o papel do 007, e o filho de Denzel Washington chamou a responsa para si sem ninguém se dar conta.
Branagh é o antagonista casca dura e astuto, e Washington dá vida à um genérico (mas carismático) agente tão secreto que esconde até suas motivações. O personagem sequer chega a ganhar um nome, e sempre é referido como ‘o protagonista’. Quer punheta cinematográfica mais digna de Nolan que isso? Só se mais cientistas aparecessem explicando conceitos básicos de física para outros cientistas, mas isso o diretor já fez em Interestelar. Para fechar o quarteto fantástico, Robert Pattinson e Elizabeth Debicki atuam sempre em suporte ao protagonista, mas a melação salda positivamente.
O ex-vampiro e futuro morcego é um ajudante de primeira, numa atuação que jogava seguro até demais para o que Tenet cultiva. As viradas temporais e a conceituação chegam aos montes, e se piscar, perdeu, mas a emoção e o coração nesse momento ficam maiores que a mente. Pattinson dá pirueta, corre da galera e dá tiro de tudo quanto é arma, guardando o maior deles para os segundos finais do filme, que no fundo adora um melodrama. Elizabeth Debicki, a próxima princesa Diana de The Crown, é o papel de quem assiste, ambiciosa e refém, a mulher se mostra uma joia rara, tanto dentro de Tenet quanto fora dele.
A humildade da obra não vai levar ele para longe, infelizmente. Tenet é o filme com que Nolan forçou abertura de cinemas com o coronavírus comendo solto, e sempre vai ser. Qualquer sonho de indicações principais no Oscar 2021 podem ser feridas por todos esses fatores, que dizem muito mais sobre a falta de caráter do diretor do que sobre os méritos do produto final. E, se relógio parado acerta duas vezes por dia, Christopher Nolan molda uma história labiríntica que não se sente na obrigação de esquentar a cuca de quem só quer se divertir.
A trilha sonora de Ludwig Göransson não nos faz sentir falta de Hans Zimmer, e a música de Travis Scott que embala os créditos finais coroa Tenet, não como o melhor filme de Christopher Nolan, nem mesmo o mais grandioso ou bem resolvido. Tenet é a prova de que o cineasta consegue brincar de fazer cinema, consegue filmar bem pra caramba sequências de ação e consegue cativar na breguice e na modéstia. Depois de Tenet, tenho esperança.