Mariana Nicastro
O quão obscuro o meio artístico pode ser? Se as paredes de uma renomada e elitizada academia de dança pudessem falar, o que diriam? Cores vibrantes, trilha sonora inquieta, fotografia teatral, atuações expressivas e uma referência intensa a sonhos, somada a crimes e mistérios. Todas essas são características de uma história contada há 45 anos, responsável por marcar a trajetória do Terror e inspirar o gênero até os dias atuais. Afinal, se o edifício de Suspiria pudesse falar, ele gritaria em meio a luzes coloridas, rituais antigos e um rock psicodélico.
O longa acompanha Suzy Bannion, uma garota americana que se muda para a Alemanha a fim de estudar em uma renomada academia de balé. Encantada e iludida com a oportunidade, a jovem não previa que sua escola dos sonhos abrigaria uma sucessão de mortes e de eventos bizarros. Com uma recepção pouco agradável e segredos pairando no ar, a protagonista passa a desconfiar que há algo cruel e mortal em seu novo lar.
Lançado em 1977, na Itália, Suspiria é um dos longas pertencentes à Tríade das Mães, do romano Dario Argento. O renomado diretor, produtor, roteirista e crítico de Cinema é conhecido por trabalhos no horror que se destacam com seus estilos ímpares, relembrados através das décadas. Com fortes referências do Giallo, movimento literário que posteriormente se estendeu para a Sétima Arte, ele também é responsável por filmes como Inferno (1980) e Prelúdio Para Matar (1975).
Em Suspiria, Argento despeja toda sua habilidade em conduzir uma história cativante e misteriosa de bruxas sob os pilares de um giallo italiano (o slasher da Itália): tramas de assassinatos em série com crescente tensão e uma revelação final do culpado pelos crimes. Com toques de sua direção, ele também se inspira em obras como Nosferatu (1922) e O Gabinete do Dr. Caligari (1920), pertencentes ao surrealismo alemão.
As produções mostraram ao cineasta que o Terror não precisa recorrer ao real para assustar. Com características que remetem à Fantasia, esses longas, assim como Suspiria, criam atmosferas sombrias e teatrais, quase como se retirados de sonhos. A obra de Argento em questão ainda cria um misto de sensações ao ultrapassar os limites da veracidade, focando em fazer o telespectador sentir e se utilizando de recursos extraordinários para esse feito.
As cores são a alma de Suspiria. Primárias e extremamente saturadas, qualquer imagem do filme grita em vermelho, azul e amarelo. Aqui, a beleza e o medo caminham juntos à fotografia de Luciano Tovoli e dialogam entre si o tempo todo. As cores estão nos cenários, figurinos e até mesmo no sangue vívido das vítimas. Quando utilizadas em luzes, a iluminação raramente é realista e se preocupa em traduzir ao público as emoções das personagens. Se alguém sente um medo intenso em tela, a tendência é que um vermelho gritante tome conta da cena.
A fotografia é surreal tal qual um pesadelo. Os cortes são rápidos e, muitas vezes, alteram rapidamente o foco de um plano mais aberto para um extremamente fechado, em busca de captar a expressão dos atores. Com uma experiência estética marcante, os enquadramentos são criativos e as escolhas de takes, tão únicas quanto a obra final.
Dentre os elementos que compõem a intensidade e sinestesia de Suspiria, a trilha sonora é um show à parte dentro do pesadelo. Composta pela banda italiana de rock progressivo, Goblin, ela mistura toques sensíveis de fantasia, melodias sombrias e muitos sintetizadores. O resultado são músicas icônicas, incômodas e angustiantes que, assim como a fotografia e iluminação, dialogam com o ritmo da obra e as sensações que deseja transmitir.
O longa de horror, contudo, também é brilhante em temática e construção narrativa. O roteiro de Dario Argento e Daria Nicolodi é perspicaz ao questionar problemáticas nos bastidores do mundo das artes. Aqui, o balé recebe os holofotes. A beleza da dança é constantemente contrastada com a realidade assustadora do Instituto. E o mesmo vale para os cenários coloridos e felizes, assim como às dançarinas. A beleza e sutileza podem enganar em um primeiro momento, da mesma maneira que enganam Suzy, mas as máscaras caem quando a maldade encontra formas de se sobressair nesse meio.
A ganância e o egocentrismo das alunas e líderes são questionados e destoam do amor sincero de Suzy pela dança. Tudo isso, porém, acontece sob um contexto sobrenatural. A verdade sobre as bruxas demora a ser revelada e o mistério sobre o que há de errado com o lugar é alarmante. Enquanto peças do quebra-cabeça são expostas, a protagonista descobre que a Companhia é uma fachada para uma seita e o crescimento da narrativa desencadeia acontecimentos maiores e mais perturbadores.
Suspiria vem para constatar a corrupção humana em contato com a elite artística. O olhar inquieto e inseguro de Suzy guia o telespectador nessa jornada através do horror psicológico. Grande traço dos giallos, e fator que diferencia tanto o longa de 1977 de seu remake de 2018 com mesmo nome, o medo é sugestivo. O temor do desconhecido e a dúvida a respeito dos próximos passos das bruxas é inquietante.
Desejariam elas realizar um ritual com a mais nova integrante da companhia? Ou estaria Suzy apenas no lugar e hora errados? O desconforto é crescente, conforme a final girl percebe indícios de que o ambiente é mais perigoso do que aparenta. Isso também é indicado em seus sonhos. Como se não bastasse a referências ao surrealismo em momentos nos quais ela está acordada, Argento faz uso de pesadelos perturbadores para confundir, mas alertar a garota do que está por vir.
Jessica Harper, intérprete da protagonista, exerce seu papel com maestria, entregando todas as emoções necessárias e uma atuação condizente com o expressionismo requerido. Com um extenso currículo de filmes, Harper ainda é relembrada e querida por sua Suzy. Ela até mesmo participou de uma ponta no remake, no qual conversa com o Dr. Josef Klemperer.
Além de Harper, a imponente e gananciosa Madame Blanc, líder da seita e da escola de dança, é interpretada por Joan Bennett. Blanc, inclusive, foi seu último papel nos cinemas. Sara (Stefania Casini) e Olga (Barbara Magnolfi) são as únicas colegas de Suzy. Ainda que coadjuvantes, elas garantem atuações fantásticas em seus momentos de cena. Casini ainda protagoniza uma intensa e brutal perseguição sob a preocupação do público para com a única aliada de Bannion no meio do caos.
Tudo em Suspiria é intencional, artístico e contribui para a sua consagração na história. O ritmo do longa é constante e as mortes que o telespectador presencia em cena movimentam o horror visual. Assim como em Corrente do Mal (2014), tudo e todos podem ser influenciados pelas bruxas a cometerem seus assassinatos, levando a uma incessante desconfiança. Sua crescente de caos e pânico deságua em um terceiro ato agitado, desesperador e angustiante enquanto Suzy busca desvencilhar-se das bruxas.
O encontro da americana com a suprema, Helena Markos, é aterrorizante. A descoberta da maior vilã da trama é encabeçada pelo fato de que trata-se da única personagem coberta por maquiagens grotescas. O toque gore ou splatter da obra a fecha com chave de ouro, já que mesmo com efeitos visuais intencionalmente pouco realistas, o exagero de banhos de sangue e o estado de algumas vítimas é perturbador.
Fazendo história, Suspiria foi precursor de um estilo elegante e marcante. O filme inspira obras diversas e as referências ao seu visual são facilmente detectáveis. A versão de 2018, de Luca Guadagnino, reconstrói o tema, mas diverge de estilo ao adotar mais sobriedade e realismo à produção. Enquanto isso, longas como Demônio de Neon (2016) e Noite Passada em SoHo (2021) abusam das referências tanto visuais, quanto temáticas, no que diz respeito às críticas ao meio artístico.
Com uma mistura de inspirações e subgêneros do horror, até o queridinho do Terror contemporâneo, James Wan, desenvolveu uma obra que dança ao mesmo ritmo de Suspiria: Maligno (2021) tem diversas características de um giallo de Argento, desde os crimes em sequência e pesadelos da protagonista até o visual iluminado por cores primárias. A beleza e a elegância da produção homenageada garante um conjunto valioso e uma experiência única. Por esse motivo, seus elementos são revisitados com frequência e visados como um clássico.
Diante de tantas alegorias, surrealismos e toques delicados e artísticos, o longa é uma força e um representante do horror carregado através do tempo. 45 anos não só não foram capazes de apagar as luzes de Suspiria, como também as fortaleceram. O tempo fez com que novas gerações de fãs de Terror se interessassem e se apaixonassem por uma criação tão original e inspiradora.
O filme, de fato, representa a arte em dois espectros. Em um deles, critica os artistas ambiciosos e vaidosos que se esquecem do verdadeiro valor da arte. No outro, usa de sensíveis toques artísticos em cada construção de cena, atuação, diálogo e recursos técnicos para entregar uma verdadeira obra-prima. Em Suspiria, a beleza se desconstrói e transfigura-se em medo. Mas o Horror nunca foi tão belo.