Vitor Evangelista
É como se a fita amaldiçoada da Samara de O Chamado (2002) sofresse uma transfusão sanguínea da IST mortal que assola Corrente do Mal (It Follows, 2015). Não há maneira simples de descrever o sorriso mortal que intitula a estreia em longas do cineasta Parker Finn. Na simples e direta trama de Sorria (Smile), uma psicóloga testemunha um suicídio e vê a própria vida se tornar um labirinto nefasto, em que só há saída na morte.
A psicóloga é a doutora Rose Cotter, interpretada com garra por uma alucinada Sosie Bacon (de Mare of Easttown e 13 Reasons Why). Em um dia aparentemente comum no hospital onde trabalha longas horas, a mulher é chamada para atender Laura Weaver (Caitlin Stasey) em pânico, dias após ela mesmo ter presenciado a morte de um professor na faculdade. Os sintomas parecem ser alucinógenos: a garota não para de ver sorrisos por aí. O problema, no entanto, é que eles não simbolizam simpatia ou boa educação.
Seja no rosto de um transeunte qualquer, ou na feição de um parente há muito tempo falecido, o sorriso carrega o terror da morte e, depois de revelar tudo isso a uma desacreditada doutora, Weaver abre a garganta com o caco de vidro do vaso que acabou de quebrar. A cena, traumática pela mutilação e pelo sangue que logo tinge de vermelho o chão límpido do consultório, se impregna na mente de Rose.
Sem chão, Bacon injeta a turbidez que o evento acomete em sua personagem, que não demora muito a enxergar os tais sorrisos, sussurrando maldições e perturbando sua psique. Nessa toada, o roteiro e a direção de Finn, que adapta para o formato de longa o seu curta Laura Hasn’t Slept, vão cavando o medo e o trauma da protagonista, em especial quando se refere ao suicídio da mãe, que aconteceu quando ela não passava de uma garotinha.
Explorando suas dinâmicas familiares nada saudáveis com a irmã Holly (Gillian Zinser) e com o noivo Trevor (Jessie T. Usher, o A-Train de The Boys), Sorria não economiza nos sustos e no mistério de ambientes mal iluminados e portas batendo ao vento. De fato, o trabalho por trás das câmeras eleva a simplicidade do material base, com especial menção para o design de som e da direção de fotografia, responsabilidade de Charlie Sarroff (Relíquia Macabra).
O que se inicia com um jogo de gato e rato entre a personagem principal e a entidade sorridente logo se transmuta na busca por respostas. Com a ajuda de Joel (Kyle Gallner, de Pânico), o ex-namorado policial que orbita sua vida, Rose descobre a figura de Robert Talley (Rob Morgan, de Stranger Things), um presidiário que pode ajudá-la a se livrar dessa doentia partida de pega-pega. Quando decide focar sua narrativa na possível origem do mal, Sorria parece considerar a possibilidade de se jogar sem medo em mitologias, para além do ar mundano que assola a produção.
Mas essa decisão se esvai e Parker Finn recua a grandeza de sua estreia, atendo-se a uma micro-batalha entre o passado e o presente. Acontece que a decisão de envelopar o trauma e o luto nessa embalagem medonha (e com um marketing para lá de criativo) é a jogada mais acertada do diretor. Afinal, discutir temas inerentes ao homem no gênero mais barato de todos é costume desde os tempos de vampiros alemães.
Exemplos atuais não faltam, e compartilhando a temática da ausência materna, Sorria vai além da sobriedade do já mencionado Relíquia Macabra, sem nunca abrir mão de doses cavalares e calculadas de humor como escape da tensão, fazendo valer seu lançamento nas salas de cinema e todo o escopo que um filme distribuído pela Paramount detém. O sorriso que amaldiçoa o mundo de Smile nasce do medo surgido na pandemia, como revelou o cineasta. Afinal, o enclausuramento mental é a oficina do diabo, com qualquer identidade que ele queira tomar: de um paciente barbudo a uma figura distorcida e desengonçada que se recusa a entrar em combustão.
Desde seu uso como símbolo embrionário na Arte grega, o sorriso possui essa equiparação automática à felicidade e ao gozo. Ao escolher não apenas nomear seu terror como medo, morte e luto com a alcunha, mas também colocar seus atores para performar o ato das maneiras mais disformes possíveis, Parker Finn acende uma estrela em sua mente cineasta (e ainda presta homenagem ao imortal O Homem que Ri, pioneiro em fazer gargalhar de medo). Nada estranho ao seu currículo, que apresenta dois curtas-metragens com a mesma pegada desconfortável de ambientes comuns invadidos pelo mal invisível.
Mas de nada adiantaria uma direção confiante, roteiro conciso, e design de produção arrojado sem uma performance principal à altura. E o trabalho de Sosie Bacon, filha de Kevin Bacon e Kyra Sedgwick que alcança o primeiro papel de peso nas telonas, se destaca em um ano recheado de jovens atrizes se esgoelando no Cinema de horror, do trabalho fenomenal de Mia Goth em X e Pearl, até o quinteto que domina Bodies Bodies Bodies.
Na pele da doutora Cotter, Bacon retém o medo na altura da cabeça, com expressões faciais amedrontadoras por si só, além de um senso reativo de primeira. Quando vê a pequena flexão nos lábios que logo resultará em um sorriso sinistro, a atriz faz metamorfose com os músculos do rosto, descola os olhos da face, fecha a boca em desespero e o transmite para quem assiste, junto da temível sensação de impotência. Em Sorria, não há como fugir do inevitável.