Jho Brunhara
Lorde é imprevisível. Após o Pure Heroine, era difícil imaginar que ela cantaria sobre festas e um coração partido, mas contrariou as expectativas e fez nascer o precioso Melodrama. Quatro anos depois, um casulo na maritimidade da Nova Zelândia e uma viagem para a Antártida, Solar Power está entre nós. Vamos ser sinceros: Ella Yelich-O’Connor se colocou numa posição difícil. Como superar o antecessor? Como manter o posto de voz da geração? A resposta vem através de um álbum que não quer ser nada disso. “Se você está procurando por uma salvadora, bom, não sou eu”.
A pressão constante de ser uma celebridade-deusa desde os 16 anos, aqui, persevera na mente da neozelandesa. Lorde revisita temas que já tinha refletido no Pure Heroine, mas, dessa vez, sendo parte central da realeza. E, no melhor jeito Hannah Montana de ser, implora pela chance de poder conciliar sua vida como artista mundialmente famosa e apenas uma garota comum, que quer aproveitar sua vida mundana e familiar em praias paradisíacas do Pacífico.
O que chega primeiro aos ouvidos é a produção de Jack Antonoff. O vocalista de Bleachers é um gênio, vide Melodrama, mas, aqui, não parece alcançar o máximo de seu potencial. Ou será que estamos saturados dos dedinhos mágicos de Antonoff? Desde 2019, já ouvimos suas guitarras acústicas em Lover, e em Norman Fucking Rockwell!, e em folklore, e em evermore, e em Chemtrails Over The Country Club, e em Daddy’s Home, e em Sling, e em Take the Sadness Out of Saturday Night, e, agora, em Solar Power.
É inconcebível imaginar que, depois de ser jogado como peteca de um disco para outro nos últimos três anos, o produtor não ia misturar as bolas aqui e ali, repetir epifanias e não ser capaz de estabelecer fronteiras. Até a pessoa mais criativa do mundo tem seus limites. Apesar da insolação, a instrumentação ainda funciona, e homenageia o folk psicodélico e pop dos anos 2000 embalado por violões.
Se enjoamos de ler e ouvir sobre o ex-membro do fun., o caso de Lorde é o completo oposto. Ativamente longe de qualquer rede social desde a metade de 2018, todo o contato com o mundo exterior passou a ser através de raros e longos e-mails aos inscritos de sua newsletter, hoje, batizada de Boletim do Instituto Solar Power. Aproveitando do privilégio de se manter offline – sonho de todos aqueles que não aguentam mais o mundo digital mas não podem se dar ao luxo de se desconectar totalmente –, teve a oportunidade de ficar imersa em seu pequeno paraíso oceânico.
Protegida por uma natureza exuberante, ruas seguras e um país que controlou rapidamente e de forma eficaz a pandemia do covid-19, Lorde pôde florescer debaixo do sol. Até a sua passadinha na Antártida deixou claro para ela que realmente odeia o inverno e não suporta o frio. O álbum se divide entre momentos triviais, como pegar uma praia com os amigos e amar seu cachorro, até a apreensão com o planeta pelas mudanças climáticas e dúvidas sobre seu próprio futuro.
Quando a inspiração se enche de questionamentos do que fazer e de quem ser, Ella não parece se importar muito em ter a resposta. Ainda que os comentários sociais sejam inevitáveis nas suas canetadas – Mood Ring é uma sátira à la The Fear sobre a cultura good vibes gratiluz –, a pretensiosidade de ter a última palavra, aqui, dá lugar para alguém que cresceu e aprendeu a apenas viver. O poder dos elementos naturais também deixou sua poesia mais sóbria e introspectiva, e humilde para admitir suas agonias internas mais vulneráveis. “Eu achei que era uma gênia, mas […] está começando a parecer que tudo que eu sei fazer é colocar uma roupa e subir num palco”.
Por mais que Lorde não queira o peso nos ombros de ser a salvadora de seu culto, ela parece não conseguir se desvencilhar totalmente da própria maldição. A faixa-título deixa escapar que, mesmo ainda tentando se encontrar, ela tem ideia de onde quer estar e nos convida para acompanhá-la. No fundo, Ella sempre vai precisar conviver com seu poder influenciador. Ela brinca sobre ser um “Jesus mais bonito”, mas, sinceramente, a iconoclastia nunca esteve tão fora de moda, e as celebridades são os santos do século 21.
Enquanto Pure Heroine se apresentou como revelador e Melodrama visceral, Solar Power abre espaço para ser descontraído e menos mágico. Ainda assim, bom. Porém, em momentos soando brando demais, algo que faz sentido em seu universo de um dia preguiçoso de verão, mas que contrasta com a intensidade que já vimos Lorde alcançar, mesmo em canções sutis.
Se agora sair de casa e aproveitar a vida ainda parece uma sugestão desconcertante, ao caminho que a pandemia perder força e finalmente a normalidade se aproximar – sendo otimista em relação às variantes –, o álbum tenderá a fazer mais sentido no pensamento coletivo. No momento, pode ser um pouco difícil aceitar a felicidade alheia das regalias de se ter tempo livre, um governo bom ou uma população vacinada, e não parece justo culpar aqueles que acharem a mensagem do disco gratuita demais ou no timing errado. Afinal, experiências individuais naturalmente afetam a percepção subjetiva da arte, ainda mais em um momento histórico como esse, de desigualdade acentuada.
Solar Power é um longo dia de verão, e transita entre a brisa amena da manhã, raios a pino do meio-dia, a melancolia do pôr do sol e o mormaço do anoitecer. Lorde usa o Astro como musa para contar uma história tão antiga quanto o tempo, e, principalmente, se permitir crescer para longe de seus traumas e refletir sobre seus anseios, enquanto aceita a felicidade das coisas simples, mesmo que custe o orgulho de seu passado como gênia irrevogável. Esse é um álbum que é menos sobre o transcendental e mais sobre o ordinário, como uma flor qualquer que desabrocha no mato à beira da praia, singela quando comparada à espécies raras e deslumbrantes, mas, ainda assim, uma flor.