Vitória Silva
O amor em tempos modernos. As primeiras trocas de olhares foram substituídas por matches em aplicativos de relacionamento. As conversas deram espaço para emojis e figurinhas do Whatsapp. Chegamos num ponto em que até ouvir a voz da outra pessoa se tornou um grande ato de intimidade à primeira vista. Essa digitalização do romance é apenas mais um exemplo de como nos reconstruímos no meio virtual e somos cada vez mais dependentes dele para criar e manter nossas relações.
Há quem diga que essa mediação tecnológica não é tão vantajosa quanto parece, Fernanda Young e Alexandre Machado decidiram mostrar isso. O casal de roteiristas que deu origem a séries grandiosas, como Os Aspones e Os Normais, decidiu encarar uma comédia-romântico-dramática no contexto dos tempos atuais. Quase que sucessores da dupla Vani e Rui, surgiram Rita (Tatá Werneck) e Enzo (Eduardo Sterblitch). E, dessa combinação, nasceu Shippados.
Ambientada num Rio de Janeiro mais melancólico do que estamos acostumados, sob a direção artística de Patricia Pedrosa, a produção do Globoplay trata de uma história de amor que surgiu de um desencontro. Rita e Enzo são dois solitários que buscam incansavelmente pela felicidade em outro parceiro para se sentirem completos, e fazem isso, claro, por meio de um aplicativo de relacionamentos. Afinal, como diz a música que dá abertura ao primeiro episódio: o que mais alguém pode querer além de amar e ser amado?
A partir de um primeiro encontro desastroso com outras pessoas, eles, por acaso, acabam se encontrando. Assim se inicia uma história sobre relações virtuais, contada a partir de um namoro nada virtual. Desde o início, Machado e Young não pretendem mostrar um romance idealizado, Rita e Enzo se complementam por suas loucuras e defeitos. Rita é uma pessoa antipática, sincera e com um humor sarcástico que se encontra perfeitamente em Tatá Werneck, além de apresentar uma série de traumas causados por sua mãe, Dolores (Yara de Novaes), com quem ela mora até hoje. Enquanto Enzo é um rapaz ansioso, com um jeito esquisitão e várias dificuldades de socialização, mas que tem uma ternura que se balanceia com o mau humor de sua companheira.
O carioca divide apartamento com Valdir (Luis Lobianco) e sua namorada Brita (Clarice Falcão), ambos adeptos do naturismo. Eles vivenciam uma relação completamente oposta a de Enzo e Rita, ao invés de se completarem, o casal nudista age como se fosse um só, se entendendo nos mais diversos delírios. O grupo de amigos se conclui com Suzete (Júlia Rabello) e Hélio (Rafael Queiroga), casal que surge quase que de imediato por intermédio dos protagonistas. Estes apresentam um amor mais carnal do que qualquer coisa, e mostram muito sobre a superficialidade das relações do mundo atual.
Diferente de Os Normais, a narrativa de Shippados não é composta por episódios independentes. Além do surgimento dos novos casais, o arco principal da temporada se dá na jornada de Rita em tentar encontrar seu pai, cuja identidade tentou ser ocultada ao máximo por Dolores, por interesse em manter a pensão que ele enviava para sustentar as duas. Nessa aventura, partem o grupo de seis amigos e a mãe desequilibrada para Maricá.
A dupla de roteiristas já é especialista em trazer a comicidade para momentos desconfortáveis entre os seus personagens, e dessa vez não poderia ser diferente. O humor surge nas situações mais escatológicas e constrangedoras possíveis, como quando uma excursão escolar chega na suposta praia de nudismo. Os diálogos sobre tópicos mundanos e aleatórios também são outro ingrediente comum do casal, e se encaixam perfeitamente aqui. Não é uma história forçada para nos fazer rir, com tiradas e clichês previsíveis. Em Shippados, nós rimos das situações e das pessoas.
As redes sociais são o alvo de boa parte do humor sarcástico e afiado da série. Em diversos momentos, os diálogos entre os personagens exemplificam a superficialidade do meio virtual e as falhas comunicativas que ele proporciona, em que até um emoji errado pode alterar o tom de uma conversa. E acabam por tirar sarro da supervalorização das coisas na internet, como os testes de compatibilidade entre namorados e o status de relacionamento no Facebook.
Após descobertas decepcionantes na viagem para Maricá, e as diversas tentativas de sabotagem por parte de Dolores, a narrativa se vira completamente para a evolução do namoro de Enzo e Rita. Nenhum relacionamento é perfeito, muito menos nos roteiros de Young e Machado. A partir de uma sequência de desentendimentos, surgem as primeiras discussões, os conflitos iniciais e o primeiro término, como toda relação de pessoas normais.
Por mais que esse talvez não seja o primeiro relacionamento sério da vida dos personagens, é a sensação que transparece para nós. Vemos a relação de Enzo e Rita como aquele namoro de adolescência, em que ambos precisam aprender a se entender antes para conseguirem, de fato, entender o outro. Erram como adolescentes, mas também amam como se fossem iniciantes nesse ramo.
A dramaticidade ainda surge como um tempero adicional na narrativa. Seria difícil falar sobre o mundo da conectividade e do imediatismo sem abordar o lado daqueles esquisitões que não se encaixam por entre as bolhas virtuais. E, mais do que isso, mostrar as dificuldades que os relacionamentos do mundo digital ocultam, em saber lidar com o outro. Nesses momentos, o temperamento difícil de Rita e seu grande potencial de auto sabotagem, unido ao nervosismo de Enzo em tentar ao máximo que as coisas deem certo não poderiam ser mais compreensíveis.
A transição para as cenas dramáticas não nos pega desprevenidos em nenhum momento, sentimos cada pontada da dor que é ser um estranho em um ambiente onde todas as relações são tão parecidas e simples, e da dificuldade em lutar por algo que não depende apenas de nós mesmos. A trilha sonora ainda é perfeitamente escolhida para nos derrubar de vez, com faixas de nomes como O Terno, Vanguart, Rubel e Los Hermanos. Ou seja, tudo de mais triste que existe na cena atual da música brasileira.
Se fosse necessário dar nome aos bois, Dolores com certeza seria a maior antagonista da série, por suas sucessivas tentativas em destruir o namoro da filha, visando apenas o seu próprio benefício. Mas também poderia ser considerada a personificação do verdadeiro vilão do mundo real: o imprevisível (ou melhor, os absurdos idiotas da vida). Aquele acontecimento que vai além do nosso próprio controle e o maior obstáculo dos verdadeiros relacionamentos. Para se manter uma relação é preciso muito mais que amar, ou ter um endereço próximo, é necessário lidar com as adversidades da vida, e também lutar contra elas. Essa talvez seja a maior lição que o primeiro ano de Shippados nos deixa.
Shippados é um atestado das falsas promessas do meio virtual, que nos distancia, ao mesmo passo que busca nos aproximar. E também é um abraço caloroso para mostrar que ainda devemos ter esperança no amor, em encontrar alguém mesmo em meio a um mar de individualismo e das dificuldades repentinas da vida. Apenas mais um dos milhares de exemplos do grandioso legado de Fernanda Young, que não poderia ter se despedido de uma forma melhor.
A tecnologia vai precisar evoluir muito para conseguir transparecer as trocas de olhares apaixonadas, o nervosismo do toque acidental de mãos e as borboletas no estômago que a vida real nos proporciona. E não importa o quanto ela lute para conectar cada vez mais as pessoas, nunca conseguirá causar um encontro de almas tão bonito como o simples acaso.