Guilherme Veiga
Burnout. Substantivo masculino. Palavra derivada do inglês, da junção de burn, “queima” mais out, “exterior”. Distúrbio psíquico ocasionado pelo excesso de trabalho, sendo capaz de levar alguém a exaustão extrema, estresse generalizado e esgotamento físico, comumente conhecido como Esgotamento Profissional ou Síndrome do Esgotamento Profissional. Em função do estrangulamento de tempo causado pelo mundo moderno, o termo é muito discutido e recentemente, saídas vêm sendo postas a prova, como o debate acerca de uma implementação da redução da carga horária para quatro dias, por exemplo. Já em Severance (Ruptura), a nova queridinha do streaming, a alternativa é bem mais distópica.
A série acompanha o departamento de Mark (Adam Scott) em uma empresa onde é possível, através do processo de ruptura, separar sua vida pessoal do seu “eu” do trabalho, criando personalidades e consciências distintas para a mesma pessoa. Você, trabalhador que chegou até aqui, já deve ter discordado e achado essa ideia na verdade bem utópica. E isso é totalmente compreensivo, porque o próprio criador Dan Erickson, estreando no formato televisivo, desenvolveu a ideia enquanto estava no porre do escritório. Porém, o show, como uma das melhores ficções científicas do audiovisual nos últimos tempos, extrapola o conceito ao máximo, invertendo todo esse mar de rosas.
O criador, aqui, desenvolve uma camada própria de seu “Inferno de Dan” ao desvirtuar completamente as relações trabalhistas as quais inconscientemente aceitamos. Se The Office inovou ao trazer humor ao mundo corporativo, Severance inova ainda mais ao trazer um suspense de ficar na ponta do sofá e um sentimento de estranhamento para esse meio. Na série, a burocracia, corporativismo, monotonia e as frias relações entre departamentos assustam. E tudo isso piora com uma ambientação desconfortavelmente minimalista e milimetricamente planejada em um molde meio Wes Anderson de ser.
Aliás, é bem interessante notar como a série consegue agregar vários conceitos da ficção científica de uma forma extremamente original que façam com que a comparação com outras obras não seja nem um pouco contundente. Desde elementos de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, com essa espécie de “perda de memória”, até mesmo à questão de se estar em um ambiente extremamente controlado trazida de O Show de Truman, tudo é construído de uma forma muito engenhosa e rica em detalhes, fugindo assim da mesmice de conceitos já apresentados anteriormente.
Porém, uma das ideias mais frescas que a série traz são as de Backrooms. O termo surgiu em meados de 2019 para identificar um gênero de lenda urbana de fóruns, assim como aconteceu com o Slenderman, e se trata de lugares “entre realidades” simbolizados por salas — geralmente escritórios — desconfortáveis e intermináveis e já foi abordado principalmente em jogos como a demo de Kojima e Del Toro, P.T, e o indie The Stanley Parable. E logo nos primeiros minutos do piloto Good News About Hell já é possível perceber isso através de um ótimo e angustiante plano-sequência e, futuramente, isso se intensifica com as bizarrices que os corredores da empresa Lumon escondem.
Tal riqueza só se dá através de um trabalho cuidadosamente minucioso feito tanto por criação como produção. Dan Erickson desenvolve um texto extremamente complexo, que consegue incorporar questões filosóficas sobre o ser e lampejos religiosos à ficção científica. Já na produção, Ben Stiller (Escape at Danemmora, A Vida Secreta de Walter Mitty), que também assina parte da direção, comanda um dream team que consegue dar corpo a toda a grandiosidade do projeto. E um dos corações da série está no design de produção, encabeçado aqui pela diretora de fotografia Jessica Lee Gagné.
Gagné, que já tinha trabalhado com Ben Stiller em obras anteriores, a princípio nem queria assumir o posto em Severance, tamanha a dificuldade de imprimir algo em um ambiente tão monótono. Porém, a fotografia por si só é um deleite à parte e te faz mergulhar naquele ambiente claustrofóbico. Uma das assinaturas da fotógrafa na série são as transições dos externos (outies, as personas reais) para internos (innies, as personas do escritório) no elevador da empresa. Para isso, é usada a técnica de Dolly Zoom, ou Efeito Vertigo, imortalizado por Alfred Hitchcock. Em Ruptura, a composição de um local apertado como o elevador faz com que o efeito distorça os próprios personagens ao invés do fundo, deixando assustadoramente nítida essa troca de consciência.
Fechando os pilares por trás das câmeras, é impossível não dar os méritos para a direção. A função aqui é dividida entre Aoife McArdle (Admirável Mundo Novo) e Ben Stiller e os dois são um ingrediente crucial da obra. Mesmo o ator sendo extremamente ligado à comédia, na direção ele já mostrava que levava jeito para outras vertentes e Severance é seu TCC com nota máxima. Em um universo de histórias com potencial que a indústria desperdiçou, a dupla consegue fazer com que a premissa interessante vá se desenvolvendo e se enriquecendo com paciência, para chegar ao season finale, The We We Are, sendo estarrecedor, de forma a parecer ser muito mais longo que seus 40 minutos, tamanha a sensação de sufocamento que eles conseguem imprimir no clímax da história.
E aqui eles vão no cerne da ficção científica ao cultivar um existencialismo típico do gênero para conduzir suas questões éticas e morais. Desde a melancolia dos exteriores, que a princípio aceitaram o processo por questão de qualidade de vida, até mesmo a adaptação moderna do Mito da Caverna que é feita com os internos, tudo é apresentado de uma forma muito sútil, concisa e cadenciada. Isso faz com que os questionamentos do espectador venham aos poucos com o desenvolver da história, de forma com que seja nutrida uma empatia com as personagens em seus dois “núcleos”, pois ambos espelham perguntas sobre nós mesmos, gerando um engajamento orgânico por parte de quem assiste.
Por isso, você não deve maratonar Severance. Em um mundo onde o binge-watching, graças à Netflix, reinou por anos, e, assim como ela, está entrando em decadência, a obra da Apple TV+ é talvez a maior cabo eleitoral do “reject modernity, embrace tradition” nessa questão. Seus episódios, mesmo que com ganchos fenomenais, são concebidos de maneira a serem digeridos um por vez, pois a série te joga no meio de duas realidades totalmente distintas e não se apressa para explicar as coisas, fazendo com que a confusão e os questionamentos dos dois mundos se repliquem em quem a assiste só que de forma muito mais potencializada. Além disso, a construção de mistérios dela é feita de forma única nos últimos anos, emulando o que a geração passada sentia acompanhando Lost.
Para que tudo isso funcione no produto final, é necessário que a atuação esteja a altura. E grande parte do elenco entrega aqui o trabalho de suas carreiras. Interpretar mais de um papel é uma tônica até que recorrente, que vai desde viver gêmeos antagônicos em narrativas novelescas, troca de corpos feitas por artefatos mágicos e vilões com 27 personalidades. Mas o trabalho que Adam Scott (Parks and Recreation, Big Little Lies) desempenha aqui é surreal e vai além. Ele consegue transmitir a carga de estar sobrecarregando o corpo com duas personas distintas e transitar muito bem entre seus personagens.
O restante do departamento também não fica atrás. A Helly R. de Britt Lower (Man Seeking Woman) funciona aqui como o contraponto da história e a forma com que ela imprime o estranhamento do escritório faz com que seja a personagem mais próxima do público. Zach Cherry (You) desenvolve aos poucos um funcionário exemplar que começa a cair na real e é o que consegue imprimir os debates éticos imputados ao telespectador. E John Turturro (The Batman , O Grande Lebowski) junto com Christopher Walken (Click) transmitem em tela um dos relacionamentos afetivos mais singelos dos últimos tempos. Já o Milchik de Trevor Tillman (The Godfather of Harlem) e a Cobel de Patricia Arquette (The Act, Boyhood) estão assustadoramente bens na composição de funcionários que não medem escrúpulos para fazer a empresa funcionar.
Severance é extremamente inventiva em seus conceitos e os executa de maneira primorosa. Sua escolha de se estruturar de uma forma intrigante é um de seus maiores acertos, fazendo uma crítica bem sutil, porém certeira, da sociedade cosmopolita e da máquina de moer silenciosa do capitalismo. Como uma ótima ficção científica, a série traz a distopia tão próxima do espectador e o encara até ele ficar desconfortável e começar a repensar a si próprio diante de uma realidade que, mesmo com a bagunça dos aparelhos oitentistas em conflito com o cenário futurista, é mais atual do que nunca.
Inteligente e audaciosa, Severance é minimalista ao mesmo tempo que gigantesca e não se prende a um formato, transitando do humor ácido para o thriller de forma imperceptível e impecável. Belamente fotografada e narrativamente instigante, a obra, que apesar do lançamento modesto, conquistou seu espaço no boca a boca como nos velhos tempos, merece ser falada muito mais do que já é, até porque, em questão de série, não estamos falando apenas da funcionária do mês, mas sim a do ano.