Jamily Rigonatto
“Agora eu sei que tenho um coração, porque ele está doendo” é uma das frases mais populares do universo do audiovisual. Emitida pelo Homem de Lata em O Mágico de Oz, a citação marcou o futuro das produções cinematográficas quando o assunto é abordar a relação dos robôs com o ato de sentir. Certamente, a inspiração recaiu na realização de Robot Dreams, filme lançado em 2023 sob a direção do espanhol Pablo Berger. Nas linhas doces da animação, a quebra de um vínculo se mostra mecânica e lancinante.
O longa-metragem conta a história de um cachorro que vive em um universo sem humanos, povoado apenas por animais que agem como tais. Cansado de estar sozinho, seu movimento é similar aos da geração da tecnologia: procurar em uma máquina a fuga de realidade. É assim que ele adquire um robô, com o qual logo desenvolve, impressionantemente, uma amizade sincera, que em pouco se desmonta em reviravoltas.
São em cenas delicadas, acompanhadas apenas pela trilha sonora – já que o filme não tem nenhuma fala –, que o enredo, também assinado pelo diretor, nos leva por um caminho leve, cheio de momentos divertidos que imprimem a sensação de que as coisas seguirão até um final feliz. No entanto, é em um desses momentos de acalento e doçura que o cão e o robô se deparam com a dor das rupturas.
Na praia, tomados por espírito livre e companheirismo, uma fatalidade acontece e as peças metálicas do melhor amigo de lata são molhadas, impedindo que o cachorro consiga o tirar da areia e tenha que ir embora sem ele. A partir desse momento, os papéis se invertem e quem precisa buscar uma forma de fugir de uma realidade desoladora e vazia é o maquinário, agora abandonado e sem perspectivas.
Os eventos se tornam distintos. Para um, há a tentativa de resgate do amigo, mas também a possibilidade de encontrar socialização, diversão e muito mais em um espaço da vida real. O outro, fica à mercê de algo que sequer sabíamos que um objeto robotizado poderia ter: a imaginação. Nesta, a existência mantém a força em sonhar com a beleza e desejar que a existência não se resuma a espera pelo momento de parar de vez.
O roteiro se estabelece em uma dualidade e é impossível não comparar o cachorro com os seres humanos. O abandono, mesmo que não intencional, coloca em cheque o quanto as relações podem ser descartáveis, seja com pessoas, máquinas, animais de estimação e o que mais houver. Assim, a humanidade no cão se revela poderosa, o suficiente para que seus sentimentos estejam acima de qualquer coisa.
Toda a similaridade não é feita de acaso. A cada passo, os movimentos parecem se aproximar de uma alegoria à contemporaneidade, juntando a dependência tecnológica e a era dos amores líquidos em uma tacada só. Nessas condições, uma empatia pelo robô se esgueira pelas pontas e fica impossível não sentir um gosto amargo nas reações do cão. Ele poderia fazer mais, mas será que nós faríamos?
Quanto ao visual, Meu Amigo Robô – como foi traduzido no Brasil – tem traços realmente adoráveis que remetem às animações clássicas dos anos 2000. Moldado no tradicional 2D, o filme tem ilustrações sutis e pouco marcadas, mas extremamente expressivas. É isso que contribui para uma narrativa limpa e clara, fácil de ser entendida sem a presença dos diálogos.
Porém, como nem tudo são flores, assistir à produção parece nos levar para um ciclo em alguns momentos. É claro que todo o cerne é bem trabalhado, mas não há necessidade de se desenvolver em longas 01h30, que em certo ponto parecem minutos demais para história de menos. Com certa economia de tempo, o resultado seria mais dinâmico e não entregaria o massante de esperar e esperar por um clímax com final feliz que nunca virá.
Ainda que com ressalvas, é inegável que a produção surpreende e o Oscar 2024 não pensa diferente. O filme concorre na categoria de Melhor Animação ao lado dos gigantes Nimona, Elementos, Homem-Aranha Através do Aranhaverso e O Menino e a Garça. Sua narrativa doce e amarga conquistou os corações dos críticos desde a estreia no 76º Festival de Cinema de Cannes, ocorrido em Maio de 2023.
Além de fazer parte de uma das principais programações de Cinema do mundo, Robot Dreams conquistou o prêmio de Melhor Animação no European Film Awards, uma das nomeações mais importantes do setor europeu. O título ainda foi reconhecido na mesma categoria pelo Prêmio Goya 2024, no qual também foi lembrado como Melhor Roteiro Adaptado.
A vida segue, mesmo que não do jeito que esperamos. Essa é a lição deixada por um longa-metragem cheio de emoção, no qual os rompimentos são cortantes, mas não impedem que o tempo passe e a vida siga. Os rumos podem parecer injustos, porém, extremamente embebidos de realidade, o que impede que tenhamos em nós uma verdadeira revolta.
Robot Dreams nos faz pensar. Refletir sobre quem somos e como tratamos as coisas que compõem o nosso redor, talvez realmente as descartemos cedo demais. Ainda assim, comprar a companhia de alguém soa verdadeiramente egoísta e igualmente solitário; não parece possível colocar na balança. Nos sonhos de um robô que sente demais, o que dói é se identificar tanto com o cruel despropositado dos encontros.