Vitor Evangelista
“O quão funda tem que ser essa cova?”, pergunta um adolescente sarado, para o que outro jovem trincado responde: “bem funda, aqui é Riverdale!”. O que isso quer dizer, você pode se questionar, assistindo à quarta temporada do programa? Eu me prontifico a responder: absolutamente nada, não tem sentido algum. O que, por si só, virou costume em Riverdale, a falta de sentido, coesão e continuidade, e, mesmo assim, o seriado exala um charme inigualável, adocicado para nos viciar.
A jornada de Riverdale na TV não começou como sinônimo de fracasso ou mediocridade, muito pelo contrário. Quando estreou na The CW em 2017, a criação de Roberto Aguirre-Sacasa ditou tendências na maneira em que a televisão se moldou nos anos seguintes. O Mundo Sombrio de Sabrina passou a ser chamada, pejorativamente, de ‘Riverdale com bruxas’, e a recém-nascida Fate: A Saga Winx não demorou a ser apelidada de ‘Riverdale com fadas’.
O que qualifica uma ‘Riverdale’ vem da fraqueza e da deficiência em contar uma boa história. Elementos básicos da escola de cinema, como desenvolvimento de personagens, progressão narrativa e até o simplório recurso de caso da semana, acabam por sofrerem da negligência de quem produz e escreve o seriado. A quarta temporada grita bingo na tabela da mediocridade: Cheryl (Madelaine Petsch) fica 10 episódios presa num núcleo enfadonho que envolve fantasmas, apenas para intercalar com a narrativa de Veronica que, tendo seu próprio enredo, só necessita se encontrar com Cheryl lá pela metade do ano.
Camila Mendes ainda busca nuances na hora de dar vida à Veronica Lodge, mas a exaustão da rixa com o pai Hiram transparece no semblante da atriz. O mesmo vale para o talento da série, Lili Reinhart. A doce e “psicopata” Betty Cooper bate cabeça a temporada toda, além de Riverdale forçar uma linha vilã da loira, explicitamente repetindo seus genes de assassino, mas nunca colocando em prática as linhas do roteiro: Betty é um monstro na boca dos outros, mas na hora do ‘vamos ver’ ela não passa de alguém frustrada com o que a cerca.
Listando apenas os defeitos e rombos de Riverdale, um título com amor à série parece antagônico e injustificável. E então entra em cena o fator sentimental que o seriado aflora, por pior que sejam os diálogos, as ações e o jogo de câmeras e closes, ao mesmo tempo, aquelas bobagens são irresistíveis. Quando a música sobe, os olhos fulminantes se procuram e os créditos pipocam logo depois do logo azul neon surgir, misterioso, não existe opção que não seja clicar no “Próximo Episódio” no player da Netflix. Assim como o terrível jingle-jangle que os jovens se alucinam por, Riverdale virou uma droga do lado de fora das telas.
Em momento algum isso significa que, assistindo e acompanhando esse live-action da Turma do Archie, as críticas somem e os olhos são fechados para a imensidão de problemas que rondam os personagens, nada disso. A qualidade primária do ano 4 é a fuga de uma ‘trama do ano’, que mais prejudicava Riverdale do que o contrário. Na temporada inicial e reduzida, o assassinato de Jason Blossom era instigante o suficiente para nos manter entretidos ao longo dos 13 capítulos.
O ano 2, já inserido na horrorosa febre dos mais de vinte episódios, foi frouxo e molenga na hora de desenvolver os crimes do Capuz Negro, o que era claro até no processo criativo, quando os roteiristas finalizaram o caso lá pelo meio do enredo, mas voltaram atrás nos 45 do segundo tempo e concluíram porcamente, sem embasamento ou qualquer noção do que funcionaria dentro daquela realidade. Esse foi o primeiro dos sinais de desgaste do seriado. A terceira temporada fracassou quando flertou com o sobrenatural, e nunca consumou a relação. Vale lembrar que isso rolou paralelo à estreia de Sabrina na Netflix, desenvolvida pelas mesmas pessoas de Riverdale e, teoricamente, ambientadas no mesmo universo.
A predisposição de Riverdale em não encerrar arcos e matar vilões é outra das preguiçosas atitudes de quem escreve a obra. Afinal, vale mais a pena colocar Edgar e a Fazenda em aguardo, enquanto o pau come solto com outra trama, até que seja conveniente para o passado bater à porta e causar ainda mais na vida desses jovens que fingem ter 17 anos, com corpos de 25 e cabeça de 30.
O roteiro funciona no tranco e na síndrome da amnésia. A bela homenagem ao pai de Archie, interpretado pelo falecido Luke Perry, abre a temporada num tocante e sensível virar de página para o ruivo. O que acaba escanteado na mesma medida, quando Andrews vive num mundo à parte, colocando máscara e descendo o cacete em bandido armado de 40 anos. Isso se mantém na quarta temporada, essa ideia de que cada um dos protagonistas vive em seriados diferentes, em tom, clima e acontecimentos.
Archie (KJ Apa) é um vigilante que daria orgulho ao Arrow. Veronica comanda uma boate clandestina e guerreia com o pai desde 2017. Betty é uma estagiária de Mindhunter, caçando serial killers na marra, enquanto Jughead (Cole Sprouse) muda de escola e interpreta um crime real cheio de literatura e traições maquinadas por escritores burros. Sobre Cheryl, Toni, Reggie e Kevin, nem se fala. A 4ª temporada de Riverdale acha um jeito de criar um império de pornô de cócegas (spoiler: e consegue levar isso muito à sério).
O drama de rivalidade com os estudantes de Stonewall, junto da discórdia dos alunos com o diretor Honey e o mistério das fitas cassetes são flácidos e nada memoráveis pela indisposição da série em dar profundidade aos antagonistas. Riverdale só conhece dois cenários: ou constrói vilões burros e complexos como papelão reciclável (os 3 casos citados acima), ou repete a mesma história desde o começo (a treta de Ronnie com o pai). Não existe meio-termo.
A culpa que intitula o texto nasce dos outros. O rolar de olhos, a cara de bunda e a frequente ‘sério que você assiste isso?’, que vem quando Riverdale é assunto de conversas banais, causa um estranhamento incomum. A existência do termo prazer culposo, ou guilty-pleasure, hierarquiza a qualidade das obras que consumimos logo de imediato. Se apaixonar por Crepúsculo ou acompanhar Rebelde, atividades consideradas ‘menores’ e ‘ruins’ (normalmente tidas como ‘femininas’) pelo coletivo pensante menospreza quem genuinamente sente coisas consumindo-as.
O que é injustificável em uma porção de instâncias. Não existe consenso de algo ser ‘bom’ ou ‘ruim’, o gosto é relativo e a crítica parte do individual. Segundo, consome quem quer, e ficar cheirando o rabo de séries e filmes que te desagradam só para ter o lugar de reclamar ou fazer chacota é puro pleonasmo. Por que diabos alguém consumiria com tanto ímpeto algo tão antagônico aos próprios gostos pessoais? Riverdale não almeja se firmar com uma produção de primeira, nem é o tipo de série que ganha prêmios por excelência.
Riverdale é ciente de seu formato, limitações e escolhas. É autossuficiente e lucrativa. É cheia de furos, buracos e inconsistências, mas também é cheia de paixão e carinho. Ela gera, em quem assiste, raiva e emoção, um sentimento de casa e conforto. A quinta temporada está no ar, prometendo fechar o arco que o coronavírus impediu, e ainda com um salto temporal, mergulhando na vida adulta da galera. Afinal, pra quem já pintou e bordou no Ensino Médio com tramas de ‘faculdade’, a série sabe que não precisa se repetir. Continuaremos estressados com decisões tontas e revelações frouxas, mas ora, Riverdale é isso mesmo.