Vitor Evangelista
Maquiada como uma produção de terror e fantasmas, A Maldição da Residência Hill usa de artifícios do gênero para tratar de uma relação familiar conturbada e extremamente relacionável ao mundo fora das telas. Transitando entre o passado e o presente dos moradores da Hill House, a produção de Mike Flanagan trabalha com alegorias e cria a melhor série original do ano da gigante de streaming.
Mesmo pautada nos fundamentos já batidos do terror – casa mal-assombrada, crianças, vultos ao fundo –, o seriado acerta a mão em não posicionar sob seu holofote os espíritos que residem na Hill House. Talvez uma das únicas produções que se propõe a estudar e analisar o pós disso tudo: quais feridas psicológicas são deixadas nas pessoas que experienciaram esses horrores?
A trama acompanha a família Crain, que se muda para a Residência Hill com o intuito de reformar a casa para vendê-la por um preço alto no fim do verão. Os pais e os cinco filhos acabam sofrendo com os espíritos que habitam a mansão. Já adultos, os irmãos são forçados a voltar para essa realidade quando uma tragédia une a família mais uma vez.
Fator interessante é que as crianças só residiram na mansão durante um verão – tempo suficiente para que sofressem com consequências que carregaram até a vida adulta. O roteiro tem uma mão cirúrgica para dedilhar temas como abuso de drogas, depressão e até a negação perante o passado. Além de linkar de maneira extremamente limpa e orgânica as duas linhas temporais. Cada um dos irmãos sofre a sua maneira, mesmo tendo passado pelos mesmos eventos traumatizantes.
A abordagem da persona de cada familiar Crain, já detonada na própria infância, evolui exponencialmente. A escolha dos atores mirins é outro feliz acerto da Netflix. Hill House sai tanto da curva do terror comum que em diversos momentos parecia estar assistindo um episódio da série hit americana This Is Us que, assim como a produção da plataforma de streaming, constrói relações de empatia público-personagens e abusa de linhas cronológicas passeando entre o antes e o agora.
O escritor Steven (Michiel Huisman) trabalha as nuances no limite entre negação e sanidade; a agente funerária Shirley (Elizabeth Reaser) é uma força da natureza, internaliza mágoa e lida com os frutos de decisões de seu passado; Theo (Kate Siegel) é a psicóloga infantil e também a Crain que carrega a melhor trama de apoio da série. Todos os momentos que envolvem sexualidade e culpa da personagem já valem a empreitada de maratonar os dez episódios.
Os gêmeos Luke (Oliver Jackson-Cohen) e Nell (Victoria Pedretti) complementam a prole de Olívia (Carla Gugino) Devo abrir um parênteses para falar sobre essa atriz: excepcional, que tem um olhar incisivo e uma calma terna que assusta quando a mulher começa a se seduzir pelos males da casa. O pai da casa é Hugh (Henry Thomas, na versão adulta e Timothy Hutton na idosa).
Luke sofre com o vício, e seus fantasmas na casa em momento algum se materializam em figuras pálidas e esguias. O temor que a atuação de Jackson-Cohen transmite é sempre carregado de um medo sobrenatural de si mesmo. Nell é a catapulta da história, é a partir dela que a família volta a ter contato com a casa e, enfim, enfrentar demônios já enraizados. É ela também que tem o melhor plot-twist.
O foco da produção na troca entre os membros da família acaba colocando os fantasmas em segundo plano – às vezes, literalmente, já que Hill House é recheado de vultos e convidados indesejados em quase todas as cenas. Houve até um cuidado estratégico em posicionar a cenografia de maneira a qual tudo casasse no plano final. Tanto que o roteiro nem se dá ao trabalho de enumerar as assombrações ou narrar suas origens em diálogos expositivos. Aqui, os fantasmas são alegorias, elementos narrativos que tem como função primária a de mover a trama da família. Mas que, vez ou outra, arrancam um susto enorme. Cuidado com a cena do carro.
Outro grande trunfo de Hill House é sua direção de arte. Desde o design de produção, a construção de cenários grandiosos (os ambientes internos são verdadeiras pinturas), passando pela equipe de iluminação que sabe muito bem como e quando mostrar certos segmentos da mansão. E, finalmente, a fotografia. Magistral, o sexto episódio foi todo gravado em quatro planos-sequência (tomada sem cortes). O cenário teve de ser construído para que a execução fosse perfeita, com passagens para elenco e equipe se esgueirarem enquanto a câmera de Flanagan transitava entre enormes tempestades.
O último episódio é um show a parte, emocionante e dotado de uma paixão efervescente. A direção de Michael Flanagan imprime na conclusão da série a aura necessária para que seja lembrada na posteridade. Assim como Invocação do Mal 2 (2016) e Hereditário(2018) conseguiram fazer, A Maldição da Residência Hill é um terror de qualidade tão alta que consegue pular barreiras e quebrar correntes de gênero.