Henrique Marinhos
Lançado em 2013, Questão de Tempo foi um experimento muito bem-vindo. Dirigida e roteirizada por Richard Curtis, a comédia romântica, que completa uma década em 2023, explora as possibilidades e os limites das viagens no tempo, tanto como um recurso narrativo quanto uma metáfora para as escolhas e os arrependimentos da vida. O maior acerto do clássico moderno e despretensioso é não se preocupar em explicar mirabolantemente as ciências da viagem no tempo, mas usar seu espaço para relacionar a temporalidade – que quase se personifica – aos afetos dos personagens e suas relações com o mundo.
No nível narrativo, o filme organiza sua trama a partir do ponto de vista de Tim (Domhnall Gleeson), que a partir dos 21 anos, por conta de uma herança familiar, pode voltar ao passado e alterar o que estiver ao alcance de sua vontade. A construção e comunicação da obra se dão a partir do uso do tempo e da relação com o público, sem nenhuma expressividade de heroísmo ou veracidade, como em Interestelar ou De Volta para o Futuro. Ele e seus antepassados podem viajar no tempo e as consequências se atêm às suas vidas, seja para fazer um romance dar certo, evitar um dia ruim ou reviver um bom, consertar arrependimentos ou o que qualquer um faria sem nenhum delírio de grandeza ou problema paradoxal – o que cai muito bem em uma Temperatura Máxima pós-almoço de domingo.
Partindo dessa premissa despretensiosa, quando não aceitamos o contrato, que aparenta ser baseado na lógica fantástica e na identificação com os personagens, temos um problema. Desconsiderando todo aparato científico presente em filmes como Vingadores: Ultimato e outros muitos do gênero, a utilização das viagens no tempo não é um meio para criar reviravoltas ou resolver conflitos históricos, mas sim um recurso para explorar as possibilidades e os limites das escolhas e dos arrependimentos da vida. A saída da curva de expectativas causa estranhamento, mas, positivamente, já que também é uma forma de surpreender e desafiar o espectador, tocando em preconceitos em relação ao gênero. Questão de Tempo também não se limita ao humor ou ao romance, construindo relações entre a família, a amizade, a paternidade e a morte.
A escolha espacial da obra também facilita a adaptação de viagens no tempo em uma vida sem muitas preocupações, com o básico de expectativa entre trabalhar, começar uma família e outras convenções sociais. O longa se passa no interior da Inglaterra, em uma casa confortável de uma família amorosa e divertida, que não tem problemas financeiros ou de saúde. Mesmo que possa ser interpretada como uma saída pela tangente para não complicar demais o roteiro, essa escolha contribui para criar um contraste entre a tranquilidade e a complexidade temporal.
Reforçando o elemento fantástico e conflituoso da narrativa, apesar de ter um cotidiano aparentemente perfeito, Tim – assim como qualquer um que descobrisse um poder assim – ainda sente a necessidade de voltar ao passado para moldar a realidade conforme queira. Corrigir seus erros, realizar desejos ou ajudar amigos e familiares é quase irrecusável, e o desenrolar da trama se dá pelas óbvias consequências inesperadas no presente e futuro.
Além disso, a obra tem uma castidade na forma de contar a história, sem muitos efeitos especiais que nem caberiam na narrativa. Ao contrário o filme se concentra nos personagens e nas suas emoções. Com paisagens bucólicas e as cenas urbanas com cores vibrantes e iluminação natural, a cinematografia, por John Guleserian, também é bem elaborada, usando planos, ângulos e movimentos de câmera que valorizam os detalhes e as expressões dos atores em uma quase celebração da vida e simplicidade.
Nas entrelinhas, os dilemas de Questão de Tempo podem não aparecer de primeira. Seguidos pelo tom leve e descontraído de um garoto amadurecendo, as problemáticas acabam passando despercebidas pelo teor romântico e contido, ou sequer foram pensadas em sua construção. A principal motivação do protagonista, pontuada pelo tempo de tela, é conquistar Mary (Rachel McAdams), uma garota que, para nós e para ele, o fisgou em um encontro às cegas – literalmente um restaurante sem luzes. No entanto, em uma de suas viagens, teve que reconquistá-la após alterar a linha temporal e apagar seu primeiro encontro real, que vive só em sua memória.
Entre o amor e a liberdade, Tim teve que escolher entre interferir na vida de Mary ou respeitar o (novo) curso da vida. A partir das oposições semânticas mínimas que estruturam a produção, como controle e acaso, a manipulação e o respeito, e o egoísmo e o altruísmo, os valores construídos são totalmente arbitrários. A sugestão de que o amor verdadeiro não depende do tempo, mas da confiança e da cumplicidade ao longo dos anos, prevalece durante toda a narrativa. Porém, a escolha final de não usar seu poder novamente só contraria as decisões que o protagonista passou anos tomando para transformar sua vida no que ela é, vez que voltar e prevenir sua primeira viagem nunca foi uma opção.
Mesmo com as facilidades das escolhas temáticas e espaciais, a utilização da narração em primeira pessoa para mostrar os pensamentos de Tim em relação ao tempo servem como uma muleta para o público acompanhar tudo que se passa, uma corda que nos guia por bifurcações em uma caverna. Saber seus sentimentos, suas motivações e suas opiniões sobre o que estamos vendo quebra a 4ª parede e nos faz criar segurança.
Essa segurança reflete a percepção de quanto a temporalidade, que se refere à organização da história, é não-linear, causando estranhamento e confusão quase intrínseco ao tema. Mas, brevemente, nos aproxima da perspectiva de Tim e constrói um território em que na segunda ou terceira vez que assistimos, nos deixa mais à vontade e situados na ordem dos fatos.
Em um nível fundamental, o longa é otimista e reconfortante, e isso destaca profundamente o nível emocional de momentos difíceis e tortuosos de assistir. As cenas dos personagens de costas para as câmeras, sem vermos suas expressões faciais e seus olhares, deixam uma sensação de alienação e isolamento, quase como uma impotência dos intérpretes em reagir – e a nossa de entendê-los. Além disso, há pouco desenvolvimento narrativo e discursivo nesses frames, mostrando-os de forma rápida e quase superficial, sem entrar em detalhes ou profundidade.
No silêncio e incompletude, há uma distância entre o público e os personagens, o que contrasta com a maioria esmagadora de cenas felizes da obra, nos deixando estagnados mentalmente nesses momentos e fazendo-nos sentir e refletir sobre eles, ao tentar preencher as lacunas com nossa imaginação e interpretação. Em muitas camadas, os produtores criam uma identificação em situações universais e humanas que, novamente, lembram da pequenez de ser quem somos com tantos delírios de grandeza provindos da indústria.
A dinâmica da viagem no tempo do filme é baseada em algumas regras simples: a primeira é que apenas os homens da família Lake podem viajar no tempo – e eles descobrem esse segredo quando completam 21 anos. A segunda é que eles só podem voltar ao passado dentro de sua própria vida, ou seja, a partir do momento de seu nascimento. A terceira é que eles precisam estar em um lugar escuro e fechar os punhos para viajar (estranha composição), podendo escolher a data e a hora exatas para onde querem ir. A partir daí, as implicações dessa dinâmica compõem outro contrato com o narrador em um dilema de encerramento: caso voltem ao passado para antes do nascimento de seus filhos, seus sexos e aparência podem ser completamente alterados na volta.
A descoberta de que seu pai está morrendo de câncer, ao início, não é um problema para o protagonista, já que pode visitá-lo no passado várias vezes, diferentemente de seus familiares. Salvo espaço para destacar a construção da cena da descoberta, que é um marco à parte no filme, introduzindo um elemento no mínimo curioso: não é a primeira vez que seu pai o conta de sua doença terminal. Mesmo que centrado em Tim, a ideia de que, como telespectadores, também não estamos cientes da totalidade da realidade, em função da habilidade compartilhada com o pai, é intrigante.
Eu só tento viver todos os dias como se tivesse viajado deliberadamente para ele no passado. Só para aproveitá-lo.
Em sequência, mesmo com a notícia, a sensação de segurança na imortalidade temporal nas visitas para conversar, jogar e se divertir com seu pai, é totalmente dilacerada pela sugestão de sua esposa de ter um terceiro filho, o que significaria um adeus definitivo. Seguindo para uma conclusão estupenda, aos mais críticos, a escolha de uma viagem para despedida de pai e filho quebram totalmente o contrato com a – descrita pelo próprio personagem – decisão mais difícil até ali. Se qualquer ida anterior ao nascimento dos filhos seria arriscada, uma viagem para a infância de Tim, antes de sua irmã ou qualquer outro filho, não seria um pouco demais, mesmo com toda função emocional?
A partir da construção de tantos aspectos que revelam as escolhas estéticas, narrativas e ideológicas dos produtores de Questão de Tempo, bem como os efeitos de sentido no público, há um frescor delicioso em uma obra sem muitas pretensões que só se compromete com o entretenimento. Essa não é, claro, a única função do filme, mas se fosse também teria sido cumprida com louvor. Combinar humor, romance, ficção e drama em uma história envolvente e emocionante, estabelecendo e quebrando contratos com o espectador, não é nada fácil.
Em uma trajetória surpreendente e desafiadora a nós e ao narrador, a construção de uma visão mais complexa e profunda da vida e do amor é sempre bem-vinda. Com diversas implicações sociais, culturais e ideológicas, refletindo e influenciando os valores, as crenças e as atitudes da sociedade em que foi produzido e consumido, Questão de Tempo é um deleite, um comfort movie e, acima de tudo, um tempo bem gasto.