Nathália Mendes
Lá pela 3ª temporada, Queer Eye já fazia mais do mesmo: replicava sua receita de sucesso, espalhando o valor do autocuidado com alegria e empatia. Mas se em time que está ganhando não se mexe (sim, o contexto merece uma piada do meio futebolístico heteronormativo), uma pandemia de coronavírus desafiou o reality da Netflix a fazer ainda mais pelo amor próprio dos outros. E foi assim, abraçando a fragilidade de seus participantes recém vacinados, que Antoni Porowski, Bobby Berk, Karamo Brown, Jonathan Van Ness e Tan France entregaram uma 6ª temporada para se engasgar de tanto chorar.
Na edição anterior, cinco gays bateram nas portas de estranhos num momento crucial, pois foi ao ar quando o mundo enfrentava o crescimento de casos de Covid-19 sem saber o que fazer. Antes disso, ainda, a nova temporada já havia iniciado suas gravações, e os Fabulosos estavam em Austin, no Texas. Como se um dos estados mais conservadores dos Estados Unidos não fosse suficiente, a série foi interrompida pela pandemia em março de 2020. Pronto. Estava nas mãos de Queer Eye o poder de ajudar pessoas completamente transformadas por uma das maiores emergências de saúde da humanidade – e assim o fizeram, bem longe de hospitais e prontos socorros.
Antes de interromper as gravações, a série conta a história de Terri White em seu primeiro episódio, Um momento decisivo. A dançarina de meia idade, extremamente sulista e carismática, abre a temporada com uma narrativa semelhante às demais já contadas no reality, até que a Covid-19 chega. Um ano de tristeza e medo a envolveu, mudando até seu relacionamento com o cabelo natural – que teve tempo de crescer longe dos holofotes, e a transformou numa mulher introvertida pela tristeza da perda. Quando os Fabulosos a encontram novamente, em maio de 2021, seu pai, James White, havia falecido.
É interessante notar que James havia sido parte da alegorização texana construída pela série logo de cara. Perdê-lo trouxe à tona a dor que, de certa forma, a sociedade experenciava desde o começo da pandemia. Diferente do animado reencontro com os participantes que normalmente acontece, Antoni, Bobby, Karamo, Jonathan e Tan voltam até o restaurante da família de Terri muito amuados. Não há outra cena em toda Queer Eye que se compare a essa, pois, ainda que o programa tenha influenciado diretamente a vida da heroína no período de isolamento, no final o saldo não era positivo.
Completando a tragédia, o The Daily Beast realizou uma pesquisa mais profunda sobre os White logo após o lançamento dos episódios. Não precisou de muito para descobrir rumores de casos de homofobia e racismo no restaurante da família, o Broken Spoke. Segundo o portal, as críticas do local no site Yelp contém acusações de discriminação e relatos de que as aulas de dança são acompanhas de comentários ofensivos. Sem surpresas, os desafios para uma temporada em um estado conservador foram turbinados por uma crise de saúde mundial, mas tudo bem: os momentos mais emocionantes e compensadores estavam por vir.
Após o retorno, as gravações aconteceram com vacina no braço dos norte-americanos. De diferentes formas, o arco de todas as narrativas se baseou na família, seja qual fosse sua composição, ou nos desafios que a pandemia de coronavírus haviam trazido para suas vidas. Seja com os formandos do Colégio Navarro ganhando um espetacular baile de formatura presencial, depois de tanto tempo vendo os colegas por uma tela de computador, ou assistindo a Dra. Jereka Thomas lutar contra a desigualdade social e trazendo as comunidades pretas e pobres para dentro da área da saúde, o aguaceiro do espectador está garantido.
Já Reggie Devore sofreu com a interrupção de sua carreira em ascensão na Música. Infelizmente, a história do rapper pertence a realidade de grande parte da população: sem trabalho, devido ao isolamento social, ele ainda precisava garantir a segurança da família. Isso não só o desmotivou completamente, mas diminuiu o brilho com que produzia e cantava. Essas sequelas específicas da pandemia, completamente pessoais para cada indivíduo, nunca foram abordadas por uma série, e Queer Eye o fez de forma respeitosa e empática. Não por acaso, a edição foi a mais intensa e emocionante para os próprios apresentadores.
Próxima da dor de Terri e Todd, a heroína Angel Flores, uma atleta de levantamento de peso transsexual, experenciava um tipo diferente de luto: aquele que rasga a alma quando se pertence à comunidade queer e o próprio pai não compreende sua verdadeira versão. Isso não foi suficiente para que Queer Eye levasse para casa mais prêmios no Emmy Criativo, cerimônia que aconteceu separada da principal, nos dias 3 e 4 de setembro. Seu episódio Angel ganha asas foi o escolhido para ser submetido nas categorias do Emmy 2022. As indicações vieram em Melhor Direção para Aaron Krummel; Melhor Design de Produção para Thomas Rouse e Josh Smith; e Melhor Montagem para Nova Taylor e Sean Gil, mas não venceu em nenhuma.
O reality não leva outras categorias da premiação desde 2019, quando venceu Direção e Montagem pela 3ª temporada, mesmo tendo sido indicada em todos os outros anos. Aparentemente, a série escolhe submeter episódios com heróis LGBTQIA+, sendo incongruente, pois, nem sempre suas histórias compartilham o brilhantismo da temporada. Angel é incrível, sendo a primeira mulher trans no show, perpassando o caminho sofrido da saudade de um pai que era tudo em sua vida, e ganhando a reaproximação com a ajuda de Karamo. No entanto, seu capítulo não tinha a característica que precisava para ganhar.
A fragilidade do ser humano a nível extremamente pessoal após uma emergência de saúde é a verdadeira protagonista da 6ª edição. O que Sarah, Jereka e Reggie viveram e fizeram em meio à pandemia merecia atenção para além de seus episódios, como poderia ter sido com o Emmy deste ano. Mesmo assim, os erros de Queer Eye são poucos – entre continuar insistindo na transformação de pessoas dotadas de preconceitos e não submeter os capítulos certos -, e a série fez um trabalho único. Afinal, não é pra qualquer um tornar as dificuldades do outro em algo mais leve de ser superado, tudo feito junto de momentos divertidamente prazerosos e botas de cowboy.
A experiência foi diferente dessa vez. Nem só de poses, botas neon e casas super decoradas vive Queer Eye. A combinação de elementos que aquecem o coração e fazem o estômago doer de rir é o que torna a série um conforto, sim, mas há muito mais ali do que só isso. A série aceitou o desafio de recuperar o amor de quem sofria com sequelas quase invisíveis da pandemia. Mais do que isso, a 6ª edição contou ao mundo sobre situações realmente difíceis de pessoas atormentadas por monstros da vida real, ou por estruturas e estigmas sociais que esmagam vidas.
Quando uma temporada acaba, os protagonistas mais incríveis parecem ter se tornado velhos conhecidos, e, com muita admiração, o desejo de que estejam felizes inunda o coração. Não é o desejo da produção de que você ame seus apresentadores, mas de que os heróis da vida real sejam verdadeiros protagonistas, bem como o amor próprio seja tratado com seriedade e importância. No final, Antoni, Bobby, Karamo, Jonathan e Tan, transformam também cada espectador. Ainda bem que a sétima temporada já está sendo filmada.