Vitória Lopes Gomez
Das confissões mais íntimas de Carolina Maria de Jesus, surge Quarto de despejo. Mesmo com mais de 1 milhão de cópias vendidas – 10 mil só na primeira semana -, tendo ganhado traduções para 13 idiomas e sendo comercializado em mais de 40 países, o nome da autora não significava tanto, à época, quanto agora – que ainda é pouquíssimo, se comparado aos devidos créditos merecidos. Mulher negra, mãe solo, moradora da favela, antes de ter seus diários publicados, a luta do dia a dia de Carolina era por comida. Seus escritos sempre foram importantes para ela, mas nunca mais do que os filhos e o árduo trabalho diário, o único meio de alimentá-los.
Assim, na favela do Canindé, a poeta – como ela mesmo se intitulava – foi encontrada. A descoberta aconteceu corriqueiramente, quando o jornalista Audálio Dantas caçava uma reportagem no local, no final da década de 50. Ele buscava retratar o cotidiano e as pessoas que ocupavam aquele espaço, mas os relatos de Carolina, escritos em mais de 35 diários encontrados onde ela vivia, contavam a história do lugar e de seus habitantes melhor do que qualquer matéria jornalística faria. E assim foi: compilando e editando os cadernos da autora, Dantas primeiro publicou trechos nos jornais Folha de São Paulo e O Cruzeiro; depois, a coletânea final foi lançada em 1960 como o livro Quarto de despejo.
Na obra, Carolina Maria de Jesus retrata as vivências na favela, que, antes de ser desocupada, ficava às margens do Rio Tietê, em São Paulo. Documentando o dia a dia, ela discorre sobre a fome, sobre as condições de moradia, saneamento básico e saúde, sobre as relações e dinâmicas interpessoais, preconceitos e violências, e sobre o estado de invisibilidade social a qual os favelados eram submetidos. Inclusive, apesar da autora deixar claro sua aversão pela vida que era obrigada a levar, ela emprega “favelados” não como uma injúria, mas descrevia os moradores da comunidade se reconhecendo entre eles.
Como Audálio Dantas constatou, o livro é um documento digno de uma análise sociológica, mas mesmo um profissional da área não conseguiria entender a totalidade das palavras escritas por Carolina. “É um documento que um sociólogo poderia fazer estudos profundos, interpretar, mas não teria condição de ir ao cerne do problema e ela teve, porque vivia a questão”, afirmou o jornalista na época.
Durante as 200 páginas do trabalho, a autora conta situações, misturando-as com sentimentos e percepções. Em um trecho, por exemplo, ela descreve a fome em cores. “Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos”. Mesmo que as condições de precariedade fossem conhecidas, Carolina, que as viveu, as colocou no papel melhor do que qualquer escritor de ficção ou repórter conseguiria, simplesmente por entendê-las. “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”, ela escreve em outro momento.
“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visitas com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quanto estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”.
Por mais triste que seja, é a pessoalidade da poeta que torna Quarto de despejo potente, impactante e triste como é. Características essas que se estendem à Literatura de Carolina. Antes de rumar a São Paulo, em 1937, e à favela do Canindé, em 1947, Maria de Jesus nasceu no interior de Minas Gerais, vinda de família simples, sofreu maus tratos na infância e frequentou a escola por menos de dois anos. O pouco tempo de estudo, porém, foi o suficiente para que ela desenvolvesse gosto pela leitura e pela escrita.
Mesmo que não haja provas concretas, é provável que a autora tenha sido autodidata. Semianalfabeta, os livros tiveram influência em sua vida, como ela mesmo destaca em trechos de Quarto de despejo: em mais de um momento, ela declara o desejo de comprá-los e lamenta que gaste o pouco dinheiro que ganha somente com alimentos. O papel importante da Literatura também é percebido na forma como ela escreve: misturado à redação com erros gramaticais e expressões próprias, Carolina emprega um vocabulário rebuscado, provavelmente espelhado de obras que consumia.
Quarto de despejo narra o cotidiano completo da favela. Escritos ao mesmo tempo que a autora trabalhava como catadora de papel para sustentar a família, os diários ganhavam mais páginas completas quando sobrava tempo. Em trechos, ela descreve a penosa rotina: “Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o privilegio de gosar descanço” e “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando” são alguns dos exemplos.
E se a obra é sobre a favela, sob o olhar e as palavras de uma favelada, o vocabulário próprio de Carolina é fundamental para o entendimento do livro e da jornada de sua autora. Erros gramaticais, de concordância e pontuação, além do uso de expressões próprias, foram mantidas em todas as edições publicadas e destacam ainda mais para o dom de Maria de Jesus. As peculiaridades do texto de Quarto de despejo o tornam cru: dos diários, íntimos e pessoais, ouvimos a versão dela sobre sua própria vida, impactante por si só.
“Passei no Frigorífico, peguei uns ossos. As mulheres vasculham o lixo procurando carne para comer. E elas dizem que é para os cachorros.
Até eu digo que é para os cachorros…”.
Apesar da intimidade dos diários, Carolina Maria de Jesus não escondia que tinha o sonho de publicá-los. “Tem hora que eu odeio o repórter Audalio Dantas. Se ele não prendesse o meu livro eu enviava os manuscritos para os Estados Unidos e já estava socegadaI”, escreve. Inclusive, a poeta usava seu trabalho como sua arma, tanto para manter a esperança no presente, para o futuro, quanto para se portar frente aos outros moradores do Canindé. “Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente”, ela declara, depois de citar nomes e descrever situações ao pé da letra.
A voz da escritora, porém, já chegou a ser desacreditada. Como disserta Maria Lúcia de Barros Mott, no artigo Escritoras negras: resgatando a nossa história, alguns críticos “olhavam com reservas a obra de Carolina, negando inclusive a autoria de seus livros, atribuindo Quarto de despejo ao jornalista Audálio Dantas. E esta não é a primeira vez que o livro de uma escritora negra tem autoria atribuída ao apresentador da obra”. Os descréditos foram constantes, mas a obra, de início, foi sucesso de vendas Brasil à fora e chamou atenção do mercado literário nacional.
O problema veio poucos anos depois. O boom arrecadou elogios e reconhecimentos para Carolina, suficientes, inclusive, para que ela realizasse o sonho de sair da favela do Canindé. Ela, os filhos José Carlos e João José e a filha Vera Eunice foram residir em Santana, bairro de classe média em São Paulo. Porém, logo, Jesus, seus escritos e os assuntos sobre os quais escrevia foram esquecidos, condenados à indiferença, mais uma vez. Prova disso é o livro ser estudado e disseminado em países estrangeiros mais do que nacionalmente: Quarto de despejo virou leitura obrigatória em vestibulares, pela primeira vez, só em 2017, 40 anos depois da morte da escritora.
O desinteresse se estende à autora, mesmo depois de falecida. Diário de Bitita, obra póstuma, foi publicado primeiro na França, em 1982, e somente quatro anos depois chegou ao Brasil. Esse apagamento, porém, não foi – e não é – surpresa. Em meio ao governo de Juscelino Kubistchek, em que o avanço prometido não se estendia às populações marginalizadas, Carolina também denunciava os políticos e as instituições, assistencialistas e oportunistas, que pouco se mobilizavam para mudar as condições da favela e só visitam o local em época de eleições. “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora”, ela defende.
“Fico pensando: os norte-americanos são considerados os mais civilisados do mundo e ainda não me convenceram que preterir o preto é o mesmo que preterir o sol. O homem não pode lutar com os produtos da Natureza. Deus criou todas as raças na mesma epoca. Se criasse os negros depois os brancos, ai os brancos podia revoltar-se”.
Os diários de Maria Carolina de Jesus, além de oferecerem o cruel panorama da realidade da favela, também destacam a personalidade de sua autora. Em meio à luta diária por sobrevivência, Carolina se mostrava extremamente perspicaz e contundente em suas percepções. As farpas aos políticos explicitavam isso, mas a poeta também criticava os próprios moradores locais, que, segundo ela, reforçavam a barbaridade, e os provocava para a necessidade de revolta, ao invés de aceitarem as precariedades. Muito consciente e crítica da sociedade, ela também comentava sobre sua independência como mulher, em não ser casada por opção e conseguir criar e sustentar os filhos sozinha, e dissertava sobre questões de raça e classe.
Uma obra completa, Quarto de despejo mostra a realidade nua e crua, melhor do que qualquer reportagem faria. A narrativa forte, difícil e tocante é, também, surpreendente, principalmente pela naturalidade e verdade de sua autora. Merecidamente, Carolina Maria de Jesus foi reconhecida com o título de doutora Honoris Causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2021, uma homenagem póstuma. Antes disso, em vida, teve de se mudar de Santana para um sítio em Parelheiros, extrema zona sul de São Paulo, no que seus livros já não emplacavam mais. Hoje, 45 anos após a morte da escritora, o Quarto de despejo persiste: 17,1 milhões de pessoas vivem em favelas, em todo o Brasil.