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Aryadne Xavier
Pergunte a alguma criança ou adulto sobre a história de um menino cujo nariz aumenta sempre que mente e, muito provavelmente, ele saberá te dizer de que história você está falando. A grande quantidade de adaptações cinematográficas do boneco de madeira vivo pode trazer o sentimento de mais do mesmo sempre que algo novo sobre o conto, popularizado pela Disney há mais de 80 anos, é lançado. Isso não ocorre na sua mais recente adaptação, construída de maneira a trazer de volta a magia a uma história repetida incontáveis vezes. O longa Pinóquio por Guillermo del Toro, dirigido por Guillermo del Toro e Mark Gustafson, reafirma como animações podem tratar de pautas importantes, equilibrando o discurso filosófico com o visual estonteante.
A história de Pinóquio pode ser considerada um clássico no universo de contos infantis e, mesmo sendo adaptada muitas vezes, com certeza a sua versão mais memorável é a de 1940, dos Estúdios Disney. Na narrativa, o jovem boneco de madeira tinha seu nariz crescendo toda vez que mentia ao tentar se safar das consequências de se meter em problemas causados pela sua inocência. A adaptação de del Toro para a Netflix, no entanto, retoma a obra original de Carlo Collodi, de 1881, voltando ao cerne de um menino vivo, mas feito de madeira, que ganha vida. A alteração de trechos memoráveis da narração entrega ao espectador uma história sobre amor, luto, responsabilidade e, mais que tudo isso: uma exposição sobre a preciosidade do que se sabe ser passageiro.
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A vontade de del Toro de realizar o projeto é antiga, de anos atrás. Os 117 minutos do filme foram planejados nos mínimos detalhes, com a criação do roteiro, storyboard, demonstrações e uma grande vontade do próprio diretor. Esse cuidado e dedicação podem ser notados no primeiro olhar ao longa: uma animação stop motion em uma época de tantas possibilidades no mundo digital, que consegue mesclar o artesanal com um estilo característico de outras obras do cineasta. Visualmente, o longa é estonteante e mágico, transmitindo a veracidade de uma história que aborda sobre uma marionete viva com o uso de bonecos, feitos como marionetes reais, que ganham a vida na junção dos vários frames realizados um a um.
O conto se passa em uma Itália fascista. Gepeto, aqui carpinteiro e não relojoeiro como na adaptação da Disney, é um homem amargurado, que não se perdoa e não consegue seguir em frente após a morte de Carlo, seu único filho, atingido por um bombardeio. A construção do fantoche, em uma noite chuvosa, embriagado e agindo por impulso, demonstra que seu coração estava tão vazio quanto o do boneco, desejando com tudo o que tinha o retorno de seu menino. E Pinóquio, aqui, é uma criança que, ao ganhar a vida de uma criatura mística e etérea de cor azul (equivalente à Fada Azul da animação de 1940), desconhece o mundo e, por isso, erra muito. Seus erros, porém, não são facilmente perdoados.
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A fúria de seu pai sobre seu comportamento é incisiva e desproporcional; Gepeto desejava que aquele garoto à sua frente fosse exatamente como Carlo, mas ele era Pinóquio. O olhar de estranheza e o ódio que recebe da comunidade após aparecer em uma missa da igreja local aumentam a carga sobre o que era apenas uma criança aprendendo sobre o mundo ao seu redor. Ele era exatamente igual o Cristo de madeira que viu em destaque na paróquia, mas era rejeitado. A agressão verbal que recebe do Podesta, o engano de Candlewick e a exploração da qual é vítima pelas mãos do Conde Volpe reforçam que a história contada aqui é sobre a vida real – mesmo que, por vezes, o aparecimento sem razões prévias, com um tom até mágico, de situações (fabricadas para aumentar a tensão) e personagens (que quase se teletransportam) possa quebrar a imersão com a história.
De todas as cenas de Pinóquio, entre os ambientes e personagens com os quais o boneco de madeira interage, um em específico, com coelhos, ampulhetas e muita areia, abriga uma sutileza especial. As conversas com a esfinge azul, uma criatura mística ao estilo del Toro que cuida da morte, se apresentam sempre filosóficas e valiosas, pingando de gota a gota algo ao espectador, uma mensagem que era preciosa demais para ser despejada de uma só vez. A quem assiste, é necessário aguardar a passagem de tempo da mesma forma que Pinóquio aguarda para retornar a vida toda vez que morre, para, então, descobrir que todo momento pode ser o último em uma realidade com início, meio e fim como lei.
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A humanização que é percebida no filme, desde sua produção artesanal impecável até a escolha por utilizar seres humanos em um contexto real, ajuda e muito na simpatia pelo personagem. Se anteriormente o menino de madeira se metia em seguidos problemas, que poderiam ser considerados bobos, e saia deles tão rápido quanto entrava, aqui ele lida com algo muito mais sério: a guerra e a morte. Acompanhar de perto os sentimentos do mestre Gepeto e sua consequente jornada ao reaprender a ser um pai e lidar com suas mágoas e sofrimento oferece uma reflexão além do arco principal. O tempo de tela de personagens secundários e arcos menores que foram trabalhados, como a similaridade de Pinóquio e Candlewick, também dá ao filme um respiro e apoio a história principal. Todos os sujeitos, em certa altura, tornam-se importantes a quem assiste.
Todas essas características culminaram em uma crítica muito favorável e cheia de elogios ao projeto. Bem antes de Pinóquio, Guillermo del Toro é inegavelmente uma figura marcante em premiações. Projetos anteriores de sua autoria, como O Labirinto do Fauno, lhe renderam prêmios de Melhor Roteiro Original no British Academy Film Awards e Melhor Diretor no Prêmio Ariel. Um de seus filmes mais aclamados, A Forma da Água, contou com 13 indicações ao Oscar 2018 e ganhou nas categorias de Melhor Filme e Melhor Diretor. Com Pinóquio não foi diferente. A obra, que já acumula indicações em prêmios anteriores ao da Academia, começou performando muito bem na temporada: a animação conquistou um Globo de Ouro na categoria de Melhor Animação.
Agora, o longa concorre em uma categoria no Oscar 2023, sendo a de Melhor Animação. Em terras britânicas, no BAFTA, o longa concorre em três categorias, entre elas a de Melhor Animação. Além dessas premiações, a produção disputa o 50º Annie Awards, considerado o Oscar da animação, em nove categorias, entre elas a de Melhor Direção em Animação, Melhor Música em Animação, Melhor Animação de Personagem, para Tucker Barrie, e uma dupla indicação a melhor dublagem para Gregory Mann e David Bradley. Outra indicação interessante foi na quarta edição do Society of Composers and Lyricists, na qual o longa aparece na lista de Melhor Trilha Sonora e Melhor Canção, com Ciao Papa, trilha que já havia sido indicada anteriormente ao Globo de Ouro como Melhor Trilha Sonora Original, mas foi esnobada pelo Oscar.
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De forma despretensiosa, Guillermo del Toro levanta discussões extremamente importantes em um filme de visual fantástico, que pode prender e encantar o espectador com sua abundância e riqueza em detalhes. O roteiro, escrito em parceria com Patrick MacHale, não se preocupa necessariamente em amarrar todas as suas pontas de maneira explícita, quase como soletrando ao público a resolução de todas as questões que se propõe a abranger. E o seu Pinóquio nos ensina que a verdadeira vida, aquela que é preciosa pela sua raridade, nasce quando não se é quem se esperava de você, quem queriam que você fosse. A verdadeira vida começa quando se é quem você nasceu para ser: você, do jeitinho que é.