Gabriel Oliveira F. Arruda
Ao escolher contar a história de origem do famoso advogado da literatura e televisão americana, de investigador deprimido até advogado de defesa altruísta, a versão da HBO de Perry Mason acabou com a difícil missão de construir um mistério noir clássico e transformá-lo num drama jurídico. Infelizmente, na mudança de um gênero para outro, a primeira temporada da produção nunca acha um ritmo certeiro para o desenvolvimento do caso e de seus personagens, apesar de ter garantido quatro indicações no Emmy 2021.
Desenvolvida por Ron Fitzgerald e Rolin Jones, a trama investigativa começa em 1931, quando o cadáver do bebê Charlie Dodson é achado por seus pais após o pagamento de um resgate pela sua volta. A natureza brutal do crime coloca a cidade de Los Angeles em polvorosa, com a população pressionando a polícia e o promotor para achar logo um culpado. O investigador divorciado e deprimido Perry Mason (Matthew Rhys) acaba se metendo no meio disso tudo quando um benfeitor misterioso pede ao seu mentor, E.B. Jonathan (John Lithgow), que ajude os Dodsons, que são cada vez mais os principais suspeitos na morte de seu próprio filho.
O Perry Mason de Matthew Rhys chega quase a ser uma caricatura de um detetive noir: das noites de bebedeira até sua antipatia por praticamente todas as figuras de autoridade que encontra, ele é um veterano tentando lidar com os traumas da guerra e um pai ausente se esforçando para reconectar-se com o filho pequeno. O ator encarna muito bem as qualidades e, mais importante, os defeitos do personagem. Por mais que sua fúria mal-direcionada se torne um pouco enfadonha na reta final, ainda ansiamos pela redenção de toda a raiva que carrega.
Criado por Erle Stanley Gardner em 1933, o personagem já foi o protagonista de dezenas de livros e centenas de episódios de televisão, o que faz a tarefa de modernizá-lo para uma audiência contemporânea ser complicada, para dizer o mínimo. O Mason vivido por Rhys carrega consigo uma amargura que a princípio destoa de versões anteriores, mas que familiariza a audiência com suas virtudes e falhas, preparando o terreno para as mudanças que virão.
Infelizmente o retrato dessa mudança não oferece novas inflexões sobre o arquétipo do detetive noir, suas motivações ou seu caráter. Indicado a Ator em Drama no Emmy 2021 pelo episódio final da temporada, em que o personagem encara sua transformação mais profunda, Matthew Rhys provavelmente não levará a estatueta para casa, mas talvez em temporadas futuras o desenvolvimento de seu personagem titular ofereça mais espaço para que ele exerça seu trabalho meticuloso que já lhe garantiu a mesma estatueta por seu papel em The Americans.
Os antagonistas de sua trama são, previsivelmente, homens perversos e arrogantes, inteiramente convencidos de que estão acima de todos os outros, e a narrativa nunca nega essa noção: por mais que os heróis improváveis tenham a verdade do seu lado, ela é sempre retratada como a coisa que menos importa no tribunal. Perry Mason parece sempre travar uma batalha entre a civilidade e a barbárie que nunca é ganha por completo por nenhum dos lados.
No início vemos Mason trabalhando por migalhas, fotografando os escândalos sujos de estrelas de Hollywood e extorquindo seus empregadores por mais alguns dólares e, mais para frente, pisando sobre um mar de corpos pútridos para obter evidências que dificilmente seriam aceitas num tribunal. A violência tão importante do gênero noir encontra aqui uma versão moderna e explícita que recusa a si mesma do debate, retratando um mundo que simplesmente é violento por si só, apesar dos melhores impulsos de seus poucos heróis.
E.B. é um desses poucos. Indicado pela segunda vez à categoria de Ator Coadjuvante em Drama após sua vitória como o Winston Churchill de The Crown, John Lithgow interpreta o mentor de Mason com familiaridade e segurança que vão lentamente sendo minadas pelos fracassos que se acumulam. Preso à suas visões antiquadas do mundo, E.B. é forçado a tomar uma decisão drástica no Capítulo Quatro (pelo qual ele foi indicado), reverberando de maneiras diferentes em todos os personagens. Embora receba pouco tempo para brilhar, o trabalho de Lithgow é exemplar, e o repertório ácido dele com Mason é um dos maiores pontos positivos da produção.
Além dele, a releitura da personagem Della Street, secretária de E.B., também merece destaque pela ousadia da performance de Juliet Rylance, que transforma o que poderia ter sido apenas uma “strong female lead” em um papel com agência e propósito que vão muito além de suas relações com os homens da trama. Apesar de ter ficado de fora das indicações desse ano, seu papel crescente nas investigações de Mason nos dá esperança que em temporadas futuras seu trabalho não será esquecido.
A progressão do caso dos Dodsons leva seus intrépidos investigadores até uma conspiração financeira que é entediante demais para descrever, mas que acaba tocando sobre algumas das facetas mais interessantes da Los Angeles em meio à Grande Depressão: o coração de um culto religioso liderado pela febril Irmã Alice (Tatiana Maslany), que promete ressuscitar Charlie e provar a inocência de seus pais; a departamento de polícia corrupto, desesperado para achar um culpado a qualquer custo, onde encontramos Paul Drake (Chris Chalk), um jovem policial negro tentando conciliar sua consciência com as ordens de seus superiores.
Apesar da Irmã Alice encarnar muito bem o carisma cru de líderes religiosos, sua personagem só funciona pelo calibre de Maslany como atriz, já que a mesma parece nunca engatar de vez com a trama, por mais que alguns de seus diálogos com Mason sejam instigantes. A performance de Chris Chalk como Drake é esquecida no churrasco, por mais que seja outra das reinvenções do texto original que mais adicione à personalidade da série e ajude a construir sua própria identidade além do legado de seu material.
Os caminhos pelos quais Drake navega suas diferentes posições na sociedade, como policial e homem negro, ajudam a delinear o contorno nocivo e perverso da metrópole, que toma vida não por sua vivacidade, mas por sua decadência. As decisões de Perry Mason são feitas na frente de um juiz, e esse juiz é o personagem coletivo formado pela cidade de Los Angeles, nos becos insalubres e mal iluminados, na textura de suas ruas sujas e na fé que seus habitantes têm na ilusão de justiça.
Não há dúvidas de que a versão da HBO seja uma superprodução: a recriação da Cidade dos Anjos nos anos 30 é exímia, usando um misto de VFX com design de produção que tira o fôlego e reflete a natureza sombria e decadente da maioria de seus habitantes, capturados em toda sua glória noir indulgente, mas nem por isso menos sedutora. Apesar de ter perdido nas categorias de Design de Produção e Fotografia para O Gambito da Rainha e The Crown, respectivamente, é impossível diminuir o nível da criação técnica e artística realizada aqui.
Ao final de sua primeira temporada, vemos que Perry Mason ainda não sabe com o que se comprometer: às vezes apresenta revisões modernas e instigantes de sua narrativa detetivesca e judicial, enquanto outras afunda de cabeça nas estéticas e tramas mais batidas delas, tirando o foco de seus aspectos mais cativantes. Por mais que seja frustrante, seu final acaba fazendo as pazes com esses contrastes, criando expectativa para que sua próxima temporada se aventure por caminhos mais interessantes.