Gustavo Capellari
Em 23 de Junho de 2013, o selo e coletivo Personal Computer Music, mais conhecido por seu nome encurtado PC Music, disponibilizava seu primeiro lançamento musical, o single Bobby, da cantora GFOTY. A empresa foi fundada pelo produtor britânico A.G. Cook, que um ano antes já testava um protótipo de selo independente, a Gamsonite.
Embora Cook tenha sido essencial para a sua construção, quando ouvimos falar de PC Music, mais do que uma história linear ou um conceito fechado em uma empresa do Reino Unido, é aberta uma multiplicidade de significados, auras artísticas, gêneros musicais e estéticas (im)possíveis da pós-modernidade tecnocapitalista. O decênio do selo não pressupõe que as histórias das mais variadas subversões da música pop mainstream tenham começado apenas em 2013. A construção da PC Music e, juntamente, de gêneros musicais recentes como o hyperpop e o bubblegum bass, é produto direto e indireto da música que os antecede e da que é criada no mesmo período.
Dentre as influências, poderíamos citar a ascensão do uso de sintetizadores, a popularização do electropop, a plasticidade tecnológica do art pop de Björk, a idiossincrasia eletrônica de Aphex Twin e o ecletismo alternativo da indietronica. Já na EDM, é possível pontuar a mistura de estilos do UK bass, ou a forma pela qual o house passou de estilo de nicho das comunidades negras e casas noturnas de Chicago para se tornar um dos gêneros mais comercialmente relevantes da música eletrônica mundial.
Para entendermos o hyperpop, o digicore, o glitch pop e outras cenas e microgêneros relacionados, é interessante refletirmos sobre temporalidades: do mesmo modo que o passado é complexo, o presente também é, pois ambos são compostos por múltiplos eventos que se relacionam dialeticamente. Eventos concomitantes se interconectam e, ao mesmo tempo em que o passado influencia o presente, os eventos contemporâneos também moldam a forma como entendemos e concebemos nossa noção de pretérito (e de futuro). A música é influenciada pelo tempo social, mas ela também o influencia.
A noção de pop futurista poderia ser interessante para pensarmos sobre essas manifestações, mas seria facilmente confundida com o futurepop, um gênero específico que mistura a positividade do synthpop com a sonoridade industrial e visão gótica-apocalíptica da EBM (electronic body music). Embora a ideia de PC Music enquanto um gênero seja instigante, já que há de fato estéticas e sonoridades que são comuns à maioria de seus artistas, ela pode ser tratada como uma central de múltiplos gêneros e expressões artísticas que ultrapassam as fronteiras do pop comercial, o que se demonstra pela variedade de perspectivas que ela comporta.
Nesse sentido, o conceito de pós-pop poderia nos servir para refletir sobre as transformações da Música, dos gêneros e das ciberculturas ao longo do tempo, especialmente durante a década de 2010. O pós-pop não seria uma negação do pop, mas sim uma outra maneira de enxergá-lo, tanto que esses atos ainda são considerados, no geral, música pop. A PC Music não é a única a atuar nesse nicho, já que uma gama importante de artistas com grande relevância na cena experimental, como Arca, 100 gecs e FKA Twigs, não possuem vínculo direto com ela.
É interessante notar que, muitas vezes, mesmo quem não está dentro da PC Music também passa por ela de alguma forma. SOPHIE, cantora e produtora escocesa falecida em 2021, não era vinculada formalmente à produtora, mas colaborava frequentemente com A.G. Cook e GFOTY, por exemplo. Charli XCX, vinculada à Asylum Records, teve múltiplas faixas produzidas por EASYFUN, A.G. Cook e pela própria SOPHIE, além de ter colaborado com Hannah Diamond na música Paradise, do Vroom Vroom EP.
O caráter anglocêntrico da PC também deve ser levado em conta, já que há artistas de outros países e de outros idiomas que não têm a mesma visibilidade. Trata-se de um circuito técnico-artístico que se origina em um dos grandes centros do capitalismo, Londres, e não necessariamente questiona explicitamente o status quo – poderíamos dizer que a gravadora enquanto entidade artística e econômica dá luz a um pop aceleracionista e pós-irônico.
No senso comum, o uso exagerado do autotune na música pop é visto com maus olhos, pois sugeriria falta de talento vocal. No hyperpop, por outro lado, ele é uma das bases de construção sonora das composições. É um gênero pautado fortemente no exagero, na performatividade, no feminino e no andrógino – tanto que vê-se cada vez mais pessoas queer inseridas em suas próprias produções independentes de pós-pop.
Evidentemente, a PC Music não deve ser vista como a única grande impulsionadora dos processos de transmutação da música pop e eletrônica. Ainda assim, é necessário reconhecer o seu pioneirismo, especialmente na cena britânica e norte-americana, e as portas que foram abertas para que os artistas continuem exercendo a sua criatividade e o seu criar, seja dentro ou fora da gravadora.
A popularidade atingida pela PC, mesmo que não se dê no mesmo nível das grandes gravadoras, demonstra que projetos independentes, alternativos, avant-garde e/ou experimentais podem e devem ter seu espaço no mercado fonográfico. A Arte em sua era de reprodutibilidade técnica não é necessariamente uma mera massa homogênea de conteúdo facilmente digerível, amorfo ou sem personalidade, mas tem o potencial de transformar-se, deformar-se, reformar-se.
A criação musical, quando tem um caráter autocrítico, permite provocar e trazer novas experiências e visões por meio de ondas sonoras, que são o meio e também a mensagem. O impacto da PC Music vai além da Música em si – atinge casas noturnas, clubes, shows, instalações musicais, comunidades e até a forma como as produtoras e distribuidoras musicais se organizam e interpretam o processo de criar, promover e entregar a música a seus ouvintes.
Esse arcabouço ciberartístico desestabiliza nossas próprias construções conceituais sobre o mundo da Música. Afinal, o que é o pop? É o gênero que faz sucesso? O que vende? O que tem um apelo comercial, então mesmo se não fizesse sucesso ainda seria considerado pop? E onde entra o pós-pop da PC Music nisso? Talvez nem existam respostas definitivas para essas perguntas. O que chamamos de pop é uma construção abstrata, um conjunto vasto e heterogêneo de diferentes sonoridades e composições, que variam ao longo do tempo – o que é popular hoje é diferente do que era popular 10, 20 ou 50 anos atrás.
Tentar colocar a gravadora em um molde, seja pop ou eletrônico, seria retirar o potencial de inovação, diferenciação e diversidade que se observa em coletâneas como Month of Mayhem e PC Music, Vol. 3. Longe de estar morta, a PC Music, ao se renovar e testar outras possibilidades e artisticidades, com projetos como o de Hyd – parceira de SOPHIE que é o rosto do projeto QT e estreou sua carreira solo em 2021 –, pôde demonstrar que o seu encerramento marca apenas o presságio para novas iniciativas de inovação musical que estão por vir.