Vitor Evangelista
O Cinema sul-coreano fez barulho ao ganhar o prêmio máximo de Cannes alguns meses atrás. Parasita, obra prima do diretor Bong Joon-Ho, quebra a barreira da língua e orquestra um espetáculo de tirar o fôlego. As nuances violentas de uma família pobre e sua simbiose à classe rica são idealizadas num longa que não se cansa de passar a perna em seu espectador.
Bong Joon-Ho sempre foi proeminente no mercado asiático de Cinema. Porém, chegou forte ao Ocidente quando dirigiu Expresso do Amanhã (2013) e Okja (2017), este segundo para a Netflix. Passado o buzz hollywoodiano e munido das trocas culturais e artísticas de lá, Joon-Ho retorna a sua língua-mãe para replicar um exercício cinematográfico de segurar o fôlego.
Parasita nunca se acomoda num só gênero. Como seu diretor e roteirista bem definiu, o filme é um ‘drama humano’. Mas, humilde, ele omite toda a megalomania que imprime na criação de sua história. O filme vencedor da Palma de Ouro passa pela comédia e pelo horror, há momentos de melodrama e de dor, até. Tudo isso sem quaisquer equívocos, o filme respira tranquilo, consciente de onde quer chegar e como alcançar esse objetivo.
Quanto menos se souber sobre a trama de Parasita, melhor. A surpresa é carro-chefe nas mais de duas horas do longa. A premissa é simples, duas famílias (uma pobre e outra rica) se envolvem, existem conflitos sociais e ideológicos. O diretor não é sútil ao construir as partes e contrapartes de suas personagens. Entretanto, isso não levanta problema algum. As interações são gratificantes ao fugir do óbvio moldado no Cinema do Ocidente (principalmente norte-americano).
Bong Joon-Ho não tem receio de caminhar rápido com seu roteiro ágil e cheio de tiradas cômicas. O texto, junto a isso, constrói uma crescente de tensão. Sensação essa que demora a se concretizar por completo, visto o empenho do filme em ser mais do que as convenções ditam. Parasita é um filme sobre famílias, laços de sangue e sobre o dia-a-dia. Nossa rotina é repleta de pequenos fragmentos de emoção, viradas repentinas. E o filme respeita isso em toda sua cor e forma. A escolha de focar suas lentes dentro de uma enorme e luxuosa casa cria um universo próprio aos olhos de quem assiste e de quem vive os dramas dentro do longa.
O diretor, ao mesmo tempo que diminui sua escala narrativa, abre o leque de possibilidades para retratar as facetas da psique humana. E a realização dessa tarefa é o que eleva tanto o grau de qualidade de Parasita. É muito raro encontrar produções que se preocupem tanto com momentos íntimos, com rimas visuais e com um subtexto que carregue pensamentos e constatações extra filme.
O elenco é primordial no exercício de crença que a produção cria. A família pobre é encabeçada pelo patriarca Ki-taek (o poderoso Song Kang-Ho). O personagem cria um cinismo brilhante, que varia entre a raiva e um sentimento de rancor. A mãe Chong-sook (Hyae Jin Chang) carrega a frustração e o medo. E os filhos são um retrato traiçoeiro e ácido do ponto inicial de Parasita.
Em contra aspecto, os Park, a família rica, são rimas da iluminação. O pai (Lee Sun Gyun), multimilionário, mal passa tempo com os filhos. Mas, quando os encontros acontecem, o filme enche a tela da luz do sol que invade a sala com portas de vidro. A mãe é ingênua, doce, e a performance de Cho Yeo Jeong sustenta tudo.
O diretor ainda investe em criar dinâmicas individuais entre seus personagens. Essa escolhe enriquece o miolo de Parasita e ainda auxilia na construção da personalidade de cada um deles. Também é fator importante no terceiro ato, onde o filme brinca com a expectativa de quem assiste, deixando todos os elementos do filme à beira de uma longa escadaria.
No resumo da ópera, Parasita engana. Bong Joon-Ho já dirigiu The Host, em 2006, um filme de criaturas, sobrenatural e de terror. Agora, em 2019, mais maduro, o diretor desvenda a nós os monstros que criamos, aqueles domesticados. Esse parasita é inteligente e astuto ao construir isso sem nunca verbalizar. Sempre nas entrelinhas; os paralelos sociais, as longas descidas nos degraus. Os comentários silenciosos. Todos alimentam a criatura. E não há nada a se fazer quando ela acorda.