Vitor Evangelista
Paloma trabalha colhendo mamões em uma plantação, faz bico de cabeleireira, namora com Zé e, junto dele, cria a pequena Jenifer no interior do Pernambuco. Ela é espirituosa, bondosa e amada por todos da cidadezinha, e no fundo, tem um desejo próximo ao coração: se casar na igreja, vestida de noiva, com buquê e chuva de arroz. Mas, quando enfim toma coragem e chega ao padre com o singelo pedido, ouve um sonoro ‘não’. Por ser uma mulher trans, o sonho de Paloma não pode ser concretizado.
Na trama, presente na seção Mostra Brasil da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e inspirada por acontecimentos reais, quem interpreta Paloma é a grandiosa Kika Sena. Arte-educadora, diretora teatral, poeta e performer, graduada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB) e mestranda em Teoria em Prática das Artes Cênicas pela Universidade Federal do Acre, Sena é pesquisadora nas áreas de gênero, sexualidade, raça e classe, e autora dos livros Marítima (2016) e Periférica (2017) e da zine Subterrânea (2019).
Sena fez história no mês de Outubro, quando se tornou a primeira pessoa trans a vencer o Troféu Redentor de Melhor Atriz no Festival do Rio 2022, premiação que também agraciou o longa com a honraria máxima da Première Brasil. O diretor Marcelo Gomes subiu ao palco e agradeceu, e depois da passagem de Paloma por Munique e pela Cidade Maravilhosa, a Mostra de São Paulo recebe de braços abertos esse que foi um dos finalistas para representar o Brasil no Oscar 2023.
A história, escrita a seis mãos por Gomes, Armando Praça e Gustavo Campos, é um mergulho no cotidiano de Paloma e nas tentativas de revolucionar sua vivência batalhando pelo mínimo de respeito e pelo básico de direitos. Embebidos pelo íntimo da protagonista e de seu amado, o pedreiro Zé (Ridson Reis), de cara somos apresentados à imagem de uma mulher apaixonada pela filha Jenifer (Anita de Souza Macedo), a quem carinhosamente se refere como ‘coração’, e pela vida que construiu ao lado do companheiro.
O sonho de casamento, que estampa tanto a sinopse quanto o belíssimo e refinado pôster do filme, surge como motivação e agente de consequência na direção de Gomes, cineasta que tem envolvimento nos roteiros dos recentes Acqua Movie e Divino Amor. Em Paloma, a força de Sena se dá no carisma e na primazia de esconder muito de suas verdadeiras emoções e empatias por baixo de um sorriso e uma expressão de entendimento tristonho.
Mas, quando o pavio está em completo estado de combustão, a artista convence como alguém levada para além do ponto de retorno. Afinal, para alguém querida e amada na cidade que habita, de que maneira ela deve encarar o cerceamento de sua individualidade e de seus almejos se não expressando angústia, medo e um bocado de raiva? A dita má fama que recai sobre o local assim que a notícia do matrimônio rompe a grande mídia é o suficiente para que a simpatia dos residentes se transforme no ódio presente na vida brasileira longe da ficção.
Transferindo violências para as vidas e os corpos que circulam Paloma, o filme ganha forma na amargura da felicidade, na virada do sorriso para as lágrimas e, principalmente, na descarga de terror que preenche a meia-hora final. Temas de exercício da religião, extensão da liberdade e desejo são a trinca que guia a mulher pelos campos de mamoeiros, trajetos esburacados e pelo deserto coletivo em que se localiza, assolada e atingida por todas as frentes, mas nunca em completo estado de devoração, como captura a fotografia de Pierre de Kerchove e ordena a montagem de Rita M. Pestana.
Diferente de um específico deserto particular que evoca margem para a existência do outro em estado de independência e permissão, o coletivo de Paloma é espaço para descascar um país imutável, impassível. E ela tem sede nesta seca. Sede de amor, de afeto, de trocas recíprocas e de respeito. Ela começa sua jornada clamando em um silêncio sorridente na estrada doce em que caminha, para logo se sentir literal e figurativamente atravessada pela amargura e pelo azedume, levando consigo todos aqueles que se emocionaram com sua história de feitos e invenções em nome do otimismo.