Jamily Rigonatto
Lutar, correr e persistir, três verbos que se encaixam perfeitamente nas rotinas de dois mundos aparentemente distantes: esporte e imigração. Ousamos Sonhar é o ponto de encontro, uma prova de que universos se fundem e são capazes de dobrar a força de qualquer palavra. No filme, dirigido por Waad al-Kateab e presente na Competição Novos Diretores da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, os sonhos ultrapassam as linhas das fronteiras territoriais.
No documentário, cinco personagens que foram forçados a deixar seus países por diversos motivos, das economias quebradas aos movimentos opressão, expõem a realidade de lutar por um espaço no esporte nos novos locais que ocupam. Os jovens fazem parte da Equipe Olímpica de Refugiados do COI (Comitê Olímpico Internacional) que participou das Olimpíadas de Tóquio em 2021 e, entre desafios e grandes desejos, vivem jornadas de verdadeiras reconstruções.
Anjelina Nadai Lohalith, Cyrille Tchatchet II, Kimia Alizadeh, Saeid Fazloula e Wael Fawaz Al-Farraj vêm do Sudão do Sul, de Camarões, do Irã e da Síria. Suas histórias se encontram no remar contra a maré que os levou a compor a equipe de 35 atletas refugiados, com enfoque no modo como o esforço de cada um os levou ao destaque no meio mesmo com as vidas inteiras a se recompor.
Apesar de expor que essas dificuldades do choque com as culturas desconhecidas e da busca pelo acolhimento em suas novas moradas, We Dare to Dream – nome original da produção – tem o tom inspirador como protagonista. Ver a superação dos esportistas é, sim, lindo, mas gera sentimentos conflitantes em quem está do lado de cá da tela e enxerga as circunstâncias em maiores proporções.
Ao mesmo tempo em que há beleza nas jornadas, saber que elas têm tantos conflitos pelo caminho por conta da ideia de fronteiras que sequer existem verdadeiramente e são apenas invenções territorialistas, faz com que as cores se acinzentem. Em certo ponto, tudo parece romântico demais para um contexto sociopolítico que definitivamente falha a cada novo passo e continua segregando os filhos da prepotência dos falsos deuses de carne e osso.
Ainda assim, há uma espécie de admiração impossível de não existir, sobra muito de emoção nos frames delicados e os enquadramentos perfeitamente adequados aos movimentos que envolvem as práticas esportivas dos protagonistas. Talvez seja exatamente essa escolha por parte da fotografia, conduzida por Wouter Boes, Franklin Dow, Alexander Hackinger e Roger Singh, que deixa os doces acima dos amargos.
Outro acerto da obra são as perspectivas. A grande equipe de profissionais, com destaque aos diversos produtores, permite que o olhar para a narrativa seja difuso. De personagens distintos a um backstage igualmente diverso, o fundo semelhante das conjunturas não torna, em nenhum momento, as singularidades ocultas. Pelo contrário, aqui, a primeira pessoa do plural vive na unidade de ser humano, mas não na de ser igual.
Por mais acomodado que Ousamos Sonhar esteja aos moldes de uma sociedade que, de tão devastada, colocou os absurdos na normalidade, seu produto se faz real, concreto e sinceramente inspirador. Valorizando a força, a coragem e a flexibilidade, fica a esperança de que independente dos destroços que envenenam os trajetos é possível chegar ao lugar ao sol.
Nos contrastes entre perda e recuperação, o documentário reflete uma realidade nefasta, mas que nem sempre vence. O pódio do enredo se solidifica em algo muito maior que medalhas de bronze, prata ou ouro; vencer ganha significados ampliados. Em um encaixe exato, o título se mostra mais que certeiro, sonhar é um ato de ousadia e, nas dinâmicas de um mundo complicado, é também a personificação da resistência.