Nathan Nunes
O cenário é a ilha remota e fictícia de Inisherin, na Irlanda. O ano é 1923, logo no final da Guerra Civil que devastou o país. O conflito é, em tese, corriqueiro. Pádraic (Colin Farrell, de Batman), a procura do amigo de longa data Colm (Brendan Gleeson, de A Tragédia de Macbeth), acaba o encontrando no bar onde costumam sempre beber juntos. O segundo se distancia, enquanto o primeiro se pergunta o que aconteceu. A resposta é curta e grossa: Colm não quer mais ser amigo de Pádraic por considerá-lo “chato” e querer se dedicar mais à paixão pela Música.
Esses são Os Banshees de Inisherin que dão nome ao novo longa de Martin McDonagh, de volta ao posto de diretor cinco anos depois de seu prestigiado Três Anúncios para um Crime, que rendeu o Oscar a Frances McDormand (Nomadland) e Sam Rockwell (O Grande Ivan). A disputa pela estatueta dourada marca novamente o trabalho do cineasta irlandês. Dessa vez, através das nove indicações recebidas pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas para o Oscar 2023, incluindo lembranças para Farrell, Gleeson, Barry Keoghan (Eternos) e Kerry Condon (Better Call Saul) nas categorias de atuação principal e coadjuvante, e para o próprio McDonagh em Melhor Roteiro Original, Direção e, claro, Filme.
A premissa de uma simples quebra de amizade faz parecer estranho o alvoroço que o projeto vem causando no Cinema, mas não demora para justificar tamanha comoção. O que McDonagh faz aqui é utilizá-la como ponto de partida para discussões mais profundas. À primeira vista, salta aos olhos e neurônios do público um estudo sobre os efeitos da rejeição em Pádraic, que claramente depende da aprovação das outras pessoas da ilha: a simples ideia de que ele possa ser chato lhe apavora, por exemplo. Quando Colm o rejeita, ele se volta para a irmã Siobhán (Condon), que tenta manter o mínimo de racionalidade no meio da situação, além de precisar lidar com suas próprias questões pessoais.
Há também relances de uma amizade com Dominic (Keoghan), um jovem que possui um relacionamento conturbado com o pai (Gary Lydon, de O Guarda) e é visto pelos moradores da ilha como um pateta beberrão desprovido de tato social. Dominic, ao qual o ator adiciona um senso trágico melancólico em sua interpretação, não é, contudo, a única companhia do protagonista, pois a dócil jumenta Jenny está sempre ao seu redor. Dessa forma, Os Banshees de Inisherin se assemelha a uma narrativa de outsiders dentro de um microcosmo social, mas recusa a categorizar-se como tal, visto que nada é tratado em tons maniqueístas e unidimensionais na obra.
Colm, o amigo que se distancia deliberadamente de Pádraic, em nenhum momento é vilanizado pelas suas escolhas. O longa, na verdade, opta pelo caminho contrário ao expor suas motivações nessa tomada de decisão de forma a nos fazer entender seu ponto de vista. Seu apreço pela solitude e a oportunidade que ela lhe dá para se dedicar mais a sua paixão pela Música é realçado, bem como a maneira que a petulância de Pádraic, às vezes, acaba sendo um pouco invasiva.
Essa escolha reflete a própria natureza do longa de McDonagh, que é indiscutivelmente complexa e livre de reducionismos. O roteiro, escrito pelo próprio cineasta, faz questão de evoluir em direção a linhas cada vez mais absurdas, tensas e até mesmo perturbadoras, nunca colocando o espectador na expectativa de algo confortável. Curiosamente, o próprio uso do banshee no título é um indicativo disso, visto que a natureza dessa criatura na mitologia irlandesa se dá como um presságio da morte, conforme representado pela figura enigmática da Sra. McCormick (Sheila Flitton, de O Homem do Norte).
Além do campo alegórico e subtextual, o longa também chama atenção pelos seus méritos técnicos. A cinematografia de Ben Davis (Capitã Marvel), por exemplo, captura perfeitamente as locações pitorescas que dão vida a Inisherin, bem como estabelece interessantes metáforas visuais para a situação dos protagonistas, várias vezes enquadrados olhando um para o outro através de um elemento divisório, como uma janela. Enquanto isso, brilham em conjunto a montagem ríspida e crua de Mikkel E.G. Nielsen (O Som do Silêncio) e a trilha sonora levemente fabulesca de Carter Burwell (Carol), ambas reconhecidas com a lembrança da Academia em suas respectivas categorias.
Ainda assim, o elemento central de Os Banshees de Inisherin é justamente o desempenho de seus protagonistas. Colin Farrell, vencedor do Globo de Ouro e indicado ao Oscar pela primeira vez pelo papel, possui uma candura que facilmente desperta a pena do espectador, mesmo com o roteiro querendo o levar cada vez mais perto de um colapso emocional. Já Brendan Gleeson impressiona pela franqueza dilacerante que traz a seu personagem, daquelas que rasgam a alma e a ferem com uma naturalidade quase sociopata. Quando o filme coloca os dois para contracenarem juntos, o resultado é ouro interpretativo, culminando em momentos memoráveis, como os últimos minutos.
Ao final, o espectador presencia a imagem dos dois homens olhando para o horizonte em frente a praia, uma das cenas mais fortes da campanha de marketing do filme. Eles estão próximos fisicamente, mas apenas em tese. O que se passou em suas vidas até chegarem naquele ponto, as formas como um influenciou o outro e os desdobramentos tortuosos de uma simples ruptura de amizade que os levou até ali, estão nas entrelinhas do que os distancia. No desfecho, esses são os verdadeiros Banshees de Inisherin: tão próximos, mas, ao mesmo tempo, tão distantes e incapazes de voltarem a ser o que eram antes de todos os conflitos; afinal, não há nem a mínima chance de voltar atrás depois de tudo o que aconteceu.