Egberto Santana Nunes
As animações do Estúdio Ghibli sempre foram conhecidas por terem em seu escopo mundos de fantasia que aparentemente são infantis, quase sempre protagonizados por crianças, mas com um fundo de dramaticidade que afasta os pequenos. Não chega a ser uma regra, mas grandes clássicos como A Viagem de Chihiro e Princesa Mononoke carregam discussões problemáticas que nos deixam fascinados e até mesmo assustados. Bem nos primórdios da companhia, Isao Takahata e Hayao Miyazaki lançaram Meu Vizinho Totoro e O Túmulo dos Vagalumes, uma estreia dupla que trouxe um clássico dominado por toda a cultura pop e um drama de sobrevivência que emociona até hoje.
As duas animações, lançadas há 30 anos, trouxeram elementos que caracterizam o que hoje conhecemos como um dos maiores estúdios de animação de todos os tempos, como os personagens jovens, o campo, o drama, a sensibilidade e o forte cuidado com os traços. No entanto, Totoro e O Túmulo carregam dois fatores que são trabalhados de maneira diferente em cada obra: a sobrevivência em meio ao caos e a perda.
O Túmulo dos Vagalumes
O cenário é a Segunda Guerra Mundial e a cidade em que se passa é Kobe, no Japão. Os barulhos das sirenes anunciam um novo bombardeamento aéreo e o cair das bombas evidencia o desespero que está por vir. O coração apertado começa com Seita e Setsuko em busca de um abrigo, se despedindo pela última vez – sem saber – de sua mãe. Os minutos iniciais do anime dão o tom que vai definir as próximas 1 hora e meia de duração.
Para escrever esse texto, foi necessário uma segunda conferida no longa – a primeira foi há mais ou menos 5 anos. Por mais que seja uma obra que tenha toda sua qualidade artística e sucesso em transmitir os horrores da guerra, não é algo para ser visto mais de uma vez. Esse ano torna-se ainda mais difícil, quando Isao Takahata, roteirista e diretor do filme, morreu aos 82 anos. Takahata não é muito conhecido entre os fãs do Ghibli, ofuscado por Miyazaki, mas sem dúvidas deixou o melhor retrato do conflito de 1939. O diretor baseou o anime em uma curta história semi-autobiográfica escrita por Akiyuki Nosaka, em 1967, em que o autor relata suas experiências antes, durante e depois dos bombardeios, além da morte de sua irmã, da qual Nosaka se culpa após todas as tentativas de sobrevivência no caminho.
Diferentemente do clássico italiano A Vida É Bela, a realidade aqui não é fantasiada pelo mais velho. Desde o começo, a personagem mais nova e irmã de Seita tem conhecimento da sua situação. O único segredo guardado é a morte de sua mãe, revelado logo após passarem um tempo na casa de sua tia. Se nem para os protagonistas o horror é escondido, a nós também não seria. Takahata mostra um cenário onde toda a realidade da guerra é transmitida, desde o roubo para garantir o sustento daqueles que amamos até a negação para preservar a sobrevivência. É a visão dos mais afetados: a população.
São raros e rápidos os momentos de alívio e conforto entre os choros e fugas mostrados na tela. Paisagens que parecem mais pinturas de quadros, a construção de um novo lar e brincadeiras na praia antecedem quase que propositalmente o ato mais difícil do anime.
Diferente de outros filmes de guerra, aqui não vemos a exploração exaustiva de efeitos especiais, bombas ou o embate em si, mas o que acontece com quem mais sofre no conflito. Nem mesmo os autores do bombardeio são mencionados, chamados apenas de “inimigos”.
O nacionalismo é perceptível na figura de Seita, mostrado em flashbacks da personagem com vestimentas de militares e frequentemente se imaginando na batalha. No entanto, tal sentimento é muito ligado à saudade do pai, que está na guerra e não responde as cartas do filho. Sua tia também demonstra a paixão pela nação através do discurso de meritocracia, em um dos momentos mais difíceis do longa, em que o clímax desencadeia a fuga do casal protagonista para o espaço que dá nome ao anime. Tais questões são usadas para mostrar como a guerra transforma as pessoas e contribui ainda mais para a carga emocional da história.
Nasce a figura-símbolo do Ghibli
Se a guerra é um cenário difícil de lidar e apresentar para o público, talvez se juntá-la a uma figura peluda e gordinha, que parece o híbrido entre um urso com um gato, seja mais fácil de dilui-la. Essa criatura não é nada mais nada menos que Totoro, o bichinho que aparece em todo crédito inicial dos filmes do Studio Ghibli. Podendo ser visto nas aberturas de seus trabalhos com aparição até em Toy Story, imagens da cena clássica reimaginadas e até mesmo uma cama desse animalzinho podem ser encontradas hoje em dia na internet. Seria tudo isso uma evidência do que a indústria cultural faz com as produções nipônicas? Talvez, mas isso é uma discussão para outra hora.
O fato é que o ícone da infância dos japoneses foi criado bem no começo da carreira de Miyazaki e ele não tinha essa fama que possui hoje no mercado; os empresários não estavam tão confiantes de que a história de um bichinho fofo cuidando de uma criança enquanto a mãe dessa sofre de uma doença fosse fazer sucesso, ainda mais como segundo filme do estúdio. Portanto, o diretor juntou forças com seu colaborador Isao Takahata para fazer uma estreia dupla com sua próxima animação, O Túmulo dos Vagalumes.
A história é simples e assim como no filme de Takahata, temos dois irmãos como protagonistas, Satsuki e Mei, a mais velha cuidando da mais nova. O sofrimento também se encontra aqui, no tratamento da doença (sem identificação) da mãe deles no hospital mais próximo de sua casa no campo. Enquanto o mundo dos adultos afasta as crianças de entender o que acontece ao seu redor, Mei acha conforto em Totoro, o espírito da floresta (simbolismo que volta a aparecer em Princesa Mononoke), escondido debaixo da árvore ao lado da casa deles.
Sem dúvidas, a imaginação fértil é o principal motor aqui. É um filme que traz a nostalgia da infância. de como a gente sempre podia achar refúgio em grandes coisas que nem estavam ali. Assim como na realidade, o pai de Mei e Satsuki só acena e sorri, entendendo a situação que se passa ali.
Junto ao enredo, a trilha sonora animada traz o tom infantil que resulta no fim da obra. Leve e bobo, mesmo com momentos de pânico, o sentimento que temos é de um sorriso idiota e caras de surpresa com as criaturas da floresta. Muito diferente do trabalho feito em Takahata, a estréia dupla na época nos faz pensar na reação da audiência há 30 anos, sem saber do que se tratava cada um dos animes.
O talento dos animadores é visto nas cenas mais banais como as garotas correndo, onde seus passos mudam de acordo com o sentimento, o perigo, a sensação do momento e também nos destaques como o ônibus-gato levando as meninas até o hospital e a primeira aparição de Totoro (tão aguardada depois de quase 45 minutos de suspense).
Totoro também tem uma pitada de autobiografia. Muitos acreditam que a doença da mãe de Satsuki e Mei seja tuberculose, pois é a mesma que fez com que a mãe de Miyazaki ficasse internada por anos no hospital de Shichikokuyama.
Seja ao lado de um drama de guerra ou sendo visto sozinho depois de anos, o segundo longa de Miyazaki foi com certeza um dos responsáveis pelo estabelecimento do império criado por ele, conhecido como a “Walt Disney do Japão”. O anúncio da construção de um parque temático no futuro com até mesmo a réplica da casa de Satsuki e Mei dentro dele e a desistência da aposentadoria do diretor consagrado apenas demonstram que a empresa que começou grande, está só crescendo.