Família, sangue, vingança e meio século de tradição reunidos em O Poderoso Chefão

Cena do filme O Poderoso Chefão - Família Corleone reunida para a foto oficial do casamento de Connie. A imagem exibe os principais membros da família Corleone. Vemos Don Vito centralizado com um smoking preto ao lado de sua esposa, Carmela Corleone (Morgana King). Do lado direito estão: Sonny (o mais velho), Sandra (esposa de Sonny), as filhas gêmeas de Sonny e Sandra à frente, Michael e sua namorada Kay. Ao lado esquerdo estão: Carmela, Connie Corleone (noiva) e seu marido Carlo Rizzi, Freddo e Tom Hagen. Todos os homens da família Corleone estão trajados de smoking preto, exceto Michael e o noivo Rizzi. Michael está com um terno oficial militar verde e Carlo aparece com uma gravata preta. Todas as crianças estão à frente de seus respectivos pais.
Coppola não poderia ser mais assertivo ao trazer o casamento de Connie Corleone como cartão de visita para apresentar o núcleo das personagens e, ao mesmo tempo, a dicotomia entre família e negócios (Foto: Paramount Pictures)

Gabriel Gomes Santana

Por que você veio até mim antes de ir à Polícia prestar queixas?, disse o grande padrinho, Don Vito Corleone, no início de O Poderoso Chefão. Aclamado pela crítica, vencedor de três Oscars e dono da mais alta charmosidade cinematográfica, o filme de Francis Ford Coppola celebra cinco décadas. Você conhece aquela expressão “old but gold, ou “velho, mas brilhante”? Se encaixa perfeitamente para resumir essa fantástica ascensão de um império americano à moda italiana. Este texto traz como tema central as nuances e razões que fazem da obra algo irrecusável, à frente de seu tempo e referência na arte de expor a máfia nas telonas.

Impossível não amar!

Utilizada como referência artística em diversos âmbitos da cultura pop, está para nascer um filme que tenha tanto reconhecimento do grande público. Se você mora no Brasil e nunca viu pelo menos uma pizzaria, barbearia, tabacaria ou qualquer outro estabelecimento com o nome inspirado nesse clássico das telonas, você vive no país errado. Diante disso, não confie em nenhuma classificação que coloque O Poderoso Chefão abaixo do ‘top 3’ de ‘Melhores Filmes de Todos os Tempos’. Digo isso por três óbvias razões: enredo, produção audiovisual e construção cênica. 

A começar pelo enredo, que por si só já é irrecusável, as propostas de cena e as planificações de filmagem fazem da trama única e enigmática. O fervor dramático é mesclado com cores quentes e trilhas sonoras épicas. As composições de cenário revivem os tempos do pós-Guerra e trazem consigo o ‘sonho americano’ de todo imigrante que busca crescer na América. Mas para que tudo isso fosse possível, era necessário escalar um elenco de peso que fizesse jus aos retratos que ali foram propostos.

Cena do filme O Poderoso Chefão - Um retrato de três figuras marcantes deste filme. À esquerda temos Francis Ford Coppola, diretor e co-roteirista de The Godfather. Ao centro, Richard Conte (intérprete de Emilio Barzini) e por fim, o grande Marlon Brando (Don Vito Corleone). Nesse retrato, Coppola está direcionando seu braço em contato com Brando enquanto seus olhos estão atentos para um ângulo horizontal. Conte observa ao centro, enquanto Brando tem sua atenção voltada para Coppola, esperando uma reação do diretor.
Uma das maiores virtudes de O Poderoso Chefão é conseguir passar ricas emoções sobre o tema da convivência familiar (Foto: Paramount Pictures)
O fardo de ter um elenco dos sonhos 

Figurinha carimbada de Hollywood, Marlon Brando foi escalado para atuar no filme que seria o mais emblemático de sua carreira. Àquela altura de sua fama, o ator estava sendo ‘jogado a escanteio’ para outros projetos, sem o merecido respaldo da crítica. Além disso, somente através de O Poderoso Chefão que Brando conseguiu desvincular qualquer rumor que o colocasse como um profissional limitado, que ainda gozava de um brilho ultrapassado nos tempos de sua adolescência. Don Vito, assim como Rocky (Sylvester Stallone), é um dos poucos personagens do Cinema em que encontramos assimilação imediata com seu intérprete. Não tem como enxergar em Marlon Brando outro personagem senão Don Vito.

Porém, se engana quem pensa que o ator topou de imediato protagonizar o papel de Vito Corleone. A convite de Coppola, o profissional teve árduas discussões com o jovem diretor até acertar os acordos comerciais da produção. Ao que tudo indica, Marlon teve que abdicar de cerca de 250 mil dólares de seu cachê pessoal. Enquanto o garanhão dos anos 1950 era veterano de sucesso, Al Pacino, por outro lado, ainda estava longe de ser uma estrela hollywoodiana.

De origem pobre e envolvido em diversos problemas de relacionamento, Al Pacino fugiu de casa aos 19 anos para bancar a escolha pela atuação. Sim, é como se o ator tivesse sido predestinado a seguir carreira artística, afinal sobrava talento. Após ganhar o prêmio Obie Award de Melhor Ator pela peça The Indian Wants the Bronx, os holofotes vieram para que, em 1971, surgisse o convite para atuar pela primeira vez no Cinema em O Poderoso Chefão como Michael Corleone, também a pedido de Coppola.

Cena do filme O Poderoso Chefão - Um retrato de Al Pacino ajustando seu figurino e se preparando para a cena dentro do restaurante Louis, localizado no Bronx (NY). A imagem está centrada em Al Pacino, que está de terno, sentado à mesa redonda do restaurante. Em pé aparece um senhor que possivelmente é um assessor técnico de gravação do filme. O senhor em pé está ajustando a gola de Al Pacino. Ele é um senhor branco, de estatura média, calvo, que aparenta ter entre 45 a 50 anos de idade. Enquanto que Al Pacino é um homem branco, de cabelo escovado e liso preto. Ao fundo da imagem percebemos que há pessoas (figurantes) sendo atendidas(os) por um garçom do restaurante.
O desacreditado Pacino teve que mostrar o melhor de Michael Corleone na gloriosa cena do restaurante Louis, indiscutivelmente uma das melhores do filme (Foto: Paramount Pictures)

Já imaginou arriscar um papel tão importante nas mãos de um pupilo estreante? E não é que deu certo? É claro que ter o experiente Marlon Brando na equipe também ajudou, mas a atuação de Al Pacino deu de dez à zero em qualquer suspeita sobre suas qualidades cênicas. Em uma entrevista durante o Tribeca Film Festival, Robert De Niro confirmou que estava sendo sondado para o papel de Michael, no entanto, confirmou que não haveria ator melhor para executá-lo senão Pacino. 

Nas cenas do hospital e do batizado de seu enteado, Michael Francis Rizzi (filho de Connie), percebe-se a absurda transformação de Michael de um personagem tímido e confuso, no início, para alguém frio, calculista e inabalável. Num ritmo frenético, a trama expõe como o destino está ligado às escolhas da vida que, apesar de serem imprevisíveis, podem ser irreversíveis. Da mesma forma, pode-se concluir que a caracterização de Al Pacino como um dos protagonistas da família Corleone também reflete na trajetória de um profissional misterioso, porém preparado para executar um personagem desafiador, assim como a carreira e vida pessoal do intérprete.

Cena do filme O Poderoso Chefão - A cena ‘em close’ do ator Al Pacino, um homem branco que aparenta ter 30 anos de idade, centralizado em primeiro plano. Ele tem cabelo escovado e liso para trás. Seus olhos são pretos e sua expressão facial é séria. Seu personagem, Michael Corleone, usa um terno cinza escuro e uma gravata zebra (listrada em preto e branco). Atrás de Michael é possivél enxergar um coral infantil de crianças brancas e sérias olhando na mesma direção que Michael (possivelmente para o padre que coordena o batismo).
Na icônica cena do batismo, a frieza do olhar de Michael Corleone esbanja excentricidade na talentosa atuação de Al Pacino (Foto: Paramount Pictures)
Uma história impecável

Cinco famílias mafiosas detinham o domínio político, militar e econômico na cidade de Nova York dos anos 1950. Porém, apenas uma conseguira conciliar ambição, poder e respeito em suas atitudes: os Corleone. Liderado por seu patriarca siciliano, Don Vito, um homem que administrava seus negócios segundo seus próprios valores éticos e morais, o clã era sinônimo de prestígio e popularidade nas comunidades nova-iorquinas. Construir um império baseado na confiança de terceiros não foi tarefa fácil, mas derrubá-lo através do asssassinato de seu líder seria impensável, devido à rede de alianças firmada entre as cinco famílias – Corleone, Tattaglia, Barzini, Cuneo e Stracci – e o governo yankee que os sustentava.

Apesar dessa política clientelista, a regra número um dos Corleone é zelar pelos seus e manter os casais sempre unidos. Como toda estrutura patriarcal, sobretudo daquela época, o legado é passado para o primogênito que, inevitavelmente, será o futuro Don Corleone. Só que nem sempre o mais velho é o mais preparado. Este é o caso de Sonny (James Caan), o filho mais intenso e explosivo dos quatro sucessores de Vito. Mulherengo, esquentado e super emocional, Sonny age por impulsos para defender a honra da família e, consequentemente, isso o leva a um destino desastroso, longe de assumir a liderança.

Cena do filme O Poderoso Chefão. Sonny (James Caan) aparece dando um tapa em Carlo Rizzi (Gianni Russo). Na imagem, Carlo se escora em uma parede na qual aparece a propaganda de um cigarro Camel, típico dos anos 1950. Ambos são homens brancos de cabelos ondulados e volumosos. Sonny está vestido com terno completamente azul, enquanto Carlo está com um sobretudo laranja manchado de sangue.
Vai, confessa, você também torceu para o Sonny dar um ‘corretivo’ em Carlo nessa cena (Foto: Paramount Pictures)

É curioso notar como Vito coordena seus negócios através de um código de conduta que tenta desvincular suas atividades ilícitas ao crime. A palavra ‘máfia’ sequer é mencionada pelo capo (em italiano, o termo é designado para se referir ao cabeça, líder, chefe). Na visão dele, cassinos e apostas são vícios ligados ao prazer, mas que não são destrutivos como as drogas. Essa recusa em se envolver no narcotráfico, junto aos Tattaglia e Barzini na clássica reunião com Sollozzo, foi justamente o que desencadeou a guerra entre as cinco famílias.

O conflito tem início com um ataque brutal a Vito Corleone, que sofre um atentado à bala e permanece fragilizado no hospital. A partir desse momento, entra em cena o caçula, Michael, um militar aspirante que não possui ligação com os negócios da família. As reviravoltas acontecem e, no final, somos surpreendidos com a rendição dos tiranos e a ascensão de uma nova era. Qual caminho é viável para se manter no poder? A linha tênue entre justiça e vingança realmente existe? Indagações profundas que são lançadas ao espectador que, possivelmente, esteja chocado com as escolhas do sucessor de Don Vito.

Cena do filme O Poderoso Chefão - Vito aparece sentado em seu escritório recebendo conselhos de seu filho, advogado e consierge Tom Hagen em primeiro plano. Don Corleone é um senhor de idade, branco e italiano, na casa de seus 70 anos e usa um smoking que carrega uma pequena rosa em seu bolso direito do blazer. Apesar de estar de lado para a câmera, Hagen é um homem branco, calvo que aparece se curvando para cochichar no ouvido de Don Vito, no lado esquerdo da imagem.
O homem das ofertas irrecusáveis também precisa escutar conselhos de seu concierge (Foto: Paramount Pictures)
Qualquer semelhança não é mera coincidência

Enaltecer O Poderoso Chefão hoje em dia é moleza perante a difícil coragem que Allan Rudy e Coppola tiveram, ainda nos anos 1960, em insistir numa obra polêmica, autêntica, irreverente e perigosa como o livro homônimo de Mario Puzo, que deu origem ao enredo. Isso porque, na conjuntura de sua época, seria bem mais convincente investir em ficções que não tivessem vínculo com facções da vida real. Naquele tempo, a Paramount Pictures, gigantesca produtora hollywoodiana, já angariava milhões de dólares com roteiros clichês de western e não pretendia se arriscar em conflitar com a grande massa.

Fato é que, para a nossa sorte, existia em paralelo o interesse de dois gênios escritores e roteiristas, Rudy e Puzo, em retratar no Cinema aquilo que era um tabu na sociedade: os mafiosos. Apesar de serem excelentes escritores, ambos jamais haviam trabalhado à frente de um projeto tão gigantesco, sobretudo, sequer haviam escrito e produzido para Hollywood. Porém, era inegável o empenho e força de vontade em levar para a Sétima Arte uma história que se aproximasse mais do povo.

Cena do filme O Poderoso Chefão. Os atores Patrick Gallo e Dan Fogler estão juntos interpretando, respectivamente, Mário Puzzo e Francis Ford Coppola. Esta imagem retrata a cena na qual ambas as personagens do seriado ‘The Offer’ aparecem sentadas em um sofá discutindo o planejamento do filme The Godfather. Puzzo é um senhor gordo italiano, na casa de seus 50 anos de idade, e está fumando um charuto. Coppola também é gordo,branco e, diferente de Puzzo, possui uma barba densa e preta. Ambos usam óculos e têm cabelo comprido liso.
A série The Offer, original do Paramount+, resgata as memórias dos bastidores do filme e todos os obstáculos que foram travados para que The Godfather pudesse entrar em cartaz (Foto: Paramount+)

O jeito de agir, se comportar e relacionar, e muitos outros elementos sociais presentes na família de Don Vito Corleone assustavam e incomodavam os verdadeiros chefões do crime organizado. O compromisso com a verossimilhança era tanto que o filme sofreu ameaças e boicotes por parte das comunidades italianas. Nem isso impediu o triunfo do clássico O Poderoso Chefão

Há boatos de que a mera apresentação do romance escrito por Mario Puzo também desagradou a classe artística. Em especial, músicos ítalo-americanos que se apresentavam em restaurantes e cassinos badalados dos anos 1960. Sim, ele mesmo: Frank Sinatra. Segundo relatos de Puzo, Sinatra teria ido contra o livro por pensar que o personagem Johnny Fontane era inspirado em sua autobiografia. Além de temer que as pessoas o associassem ao cantor decadente da obra, o astro do jazz argumentava que O Poderoso Chefão prejudicava a imagem da comunidade italiana.

Antes de produzir um filme, no momento de seleção de elenco, é natural que se escolha atores que melhor se encaixem no perfil estereotipado do roteiro de gravação. Mas e quando, sem querer, se descobre que a vida pessoal dos atores casa perfeitamente com o propósito das personagens? Foi o que aconteceu com o ator Alfredo James Pacino, também conhecido como Al Pacino. Nascido e criado no Bronx, Pacino era neto de imigrantes italianos, naturais de Corleone, província siciliana que também é retratada no filme de Coppola.

Cena do filme O Poderoso Chefão - Vito aparece dando conselhos a Johnny Fontane em primeiro plano e Sonny aparece ofuscado atrás de seu pai em segundo plano. Johnny é um rapaz branco, com cabelo escovado para trás, típico dos cantores dos anos 1950. Fontane está de costas para a foto. Vito está com a testa franzida e aparece com uma expressão facial de preocupação. Don Corleone e seu filho Sonny estão vestidos de smoking para o casamento de Connie. Vito carrega uma rosa no paletó.
Johnny Fontane é um ator que se vê em decadência pela desmotivação do ramo artístico e uma crise de autoestima, e adivinhem a quem ele recorre (Foto: Paramount Pictures)

Além dos elementos técnicos essenciais de filmagem, outra característica marcante se dá pela quebra de clichês presentes nas obras contemporâneas ao seu lançamento. Clint Eastwood, Clark Gable e Sean Connery são fantásticos, mas alimentavam fantasias previsíveis. Assassinar o protagonista e frustrar a jornada desses heróis estava fora de cogitação. Para falar a verdade, até hoje é raro encontrar narrativas que saibam romper com as expectativas do público positivamente, quem dirá permanecer durante meio século como modelo de dramaturgia.  

Em meio a isso tudo, está mais do que provado ser impossível não amar este icônico trabalho que, não à toa, foi indicado e ganhou diversos prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. O Poderoso Chefão coleciona, ao todo, 17 prêmios, das 25 vezes em que foi indicado. Talvez o descrédito do público que queria boicotá-lo tenha sido o combustível necessário para fazer do filme o melhor de todos os tempos. Depois de receber, merecidamente, o Oscar de Melhor Filme em 1972, o seu nobre reconhecimento mundial o fez pioneiro na arte de encenar a máfia nas telonas.

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