Caroline Campos
Guillermo del Toro sempre teve uma predileção pelo inóspito e o bizarro. Conforme sua carreira foi amadurecendo, o diretor se viu cada vez mais confortável em meio às suas criações monstruosas com olhos nas mãos, chifres reluzentes e escamas pelo corpo, buscando reforçar que, no final das contas, o estranho pode ser um convite para uma vida fantástica. No entanto, em O Beco do Pesadelo, sua nova empreitada, del Toro prende as criaturas no baú, fecha o livro de histórias mágicas e assume uma roupagem realista à sua maneira para provar, mais uma vez, que o ser humano é bem mais perigoso que o pior dos monstros.
Baseado no romance de mesmo nome escrito por William Lindsay Gresham em 1946 e inspirado pelo filme subsequente de Edmund Goulding lançado em 1947 – que, apesar de estampar o Nightmare Alley original, ganhou o título de O Beco das Almas Perdidas no Brasil –, o longa repaginado do diretor mexicano é uma viagem suja e moralmente degradante pelos Estados Unidos dos anos 30. Com uma mistura heterogênea de personagens desesperados, quem encabeça a trama é Stanton Carlisle, um andarilho contido e misterioso que é acolhido por um circo itinerante e passa a se envolver com os segredos de seus artistas.
Se nos primeiros momentos do thriller Carlisle é envolto em um silêncio ameaçador, logo passa a exalar um charme determinado a conquistar mais – mais dinheiro, mais amor, mais fama. Quem garante forma ao protagonista é Bradley Cooper, que, apesar de acumular atuações sem muito tempero na carreira, entrega uma alma intensamente perturbada ao noir de Guillermo del Toro, assumindo o fardo que uma vez pertenceu a Tyrone Power. Com uma persona para cada fase de O Beco do Pesadelo, Cooper entende o que o trabalho exige e se adequa a uma narrativa própria de ascensão e queda, corrompido pela ganância e rumando assumidamente a sua derrocada.
Enquanto Stan encontra seu bilhete premiado rumo ao estrelato em meio às lonas brancas e vermelhas encardidas, nós encontramos o melhor que o comboio de coadjuvantes tem a oferecer. Com Willem Dafoe, Toni Collette, David Strathairn, Rooney Mara e Ron Perlman, parceiro de longa data do diretor, del Toro extrai uma profusão de talento para contar a sua história – seja por meio da inocência juvenil de Mara ou da crueldade de Dafoe e seu “selvagem”. Mesmo ultrapassando as duas horas de duração, o resultado final é hipnótico, como se o espectador fosse apenas uma parte da plateia de aflitos de Madame Zeena.
Ao migrar para a segunda metade do longa, Cooper se mantém firme como dono da narrativa, mas Rooney Mara tem dificuldades para ficar de pé em meio ao mar agitado de Chicago e seus novos personagens. Apagada, a atriz e sua Molly dividem o peso fantasmagórico da indiferença não só do marido, como também do roteiro de Guillermo del Toro e Kim Morgan, que falha em dar uma personalidade minimamente chamativa para a mulher-elétrica. Como consequência, a garota é devorada pela trama niilista, rendendo poucos bons momentos e ficando ainda mais ofuscada com a chegada felina de Cate Blanchett.
Interpretando a psiquiatra Lilith Ritter, a atriz veterana carrega nas mãos a perdição do ato final no melhor estilo femme fatale que embalou o gênero dos anos 40. Sempre acompanhada de um facho certeiro de luz, Ritter auxilia na manipulação mediúnica de Carlisle, mas mantém seu jogo por debaixo dos panos durante toda a produção, estrelando seu próprio enredo secreto sem que nos demos conta. Blanchett, por si só, é um fenômeno à parte; a câmera a segue como uma amante reprimida, sempre receosa de se aproximar demais, mas nunca tirando o olho ciclópico de cada movimento que sua doutora performa.
A elegância da personagem faz jus ao ritmo da Era de Ouro da vida de Stan, momentos antes da dupla de roteiristas adentrar na conclusão sombria de O Beco do Pesadelo. Enquanto o longa de 1947, empastelado pelo Código Hays, precisou se conter na violência e transmitir uma mensagem esperançosa antes dos créditos subirem, a regravação do diretor mexicano deixa claro que os tempos de censura há muito acabaram. Com a sublime participação de Richard Jenkins, o último ato do Grande Staton é banhado a sangue, ganância e corrupção. Já que, em seu 11º filme, Guillermo del Toro não pôde inserir demônios diretamente nas telas, ele deu um jeito de encontrá-los na alma atormentada de um médium picareta.
Inundado pela inventividade artística de seu criador e da equipe de renome por trás das câmeras, não foi surpresa alguma se deparar com o título Nightmare Alley citado quatro vezes na lista de indicados ao Oscar 2022. Olhando pela lente da Academia, o maior trunfo da produção está concentrado nas categorias técnicas, especialmente pelas mãos talentosas de Tamara Deverell e Shane Vieau, responsáveis por agarrar com unhas e dentes a nomeação em Melhor Design de Produção. Claro que não poderia ser diferente, já que é difícil desviar a atenção do deslumbramento colossal que o freak show criado pela designer e o decorador causa.
Funcional e hipnotizante, o habitat das criaturas assombradas por vícios, sonhos e pela Grande Depressão é o cenário perfeito para dar início a decadente trama visual que del Toro planejava contar há mais de trinta anos. Em complemento, o jogo entre penumbras primorosas e cores vibrantes idealizado por Dan Laustsen também marcou presença na categoria de Melhor Fotografia. O circo de Deverell e Vieau é parceiro direto da cinematografia de Laustsen na criação da atmosfera suja de O Beco do Pesadelo e, mesmo quando Stan e Molly passam a frequentar a alta sociedade americana, repleta de luxos e ostentações, a força das sombras que rodeiam seus números é um lembrete constante da fragilidade daquela realidade.
O filme também foi lembrado em Melhor Figurino, estampando o nome e o trabalho vintage de Luis Sequeira entre os indicados. Construindo sua estética lado a lado com a iluminação e o tom de cada cenário, Sequeira buscou representar com fidelidade os dois períodos de tempo diferentes da história, mas sem perder uma base moderna. Por fim, a obra garantiu a grande honraria de participar da seleta lista dos que concorrem a Melhor Filme. Dessa vez, o trio de produtores que pode subir ao palco da maior celebração do Cinema mundial é composto por Bradley Cooper, J. Miles Dale e Guillermo del Toro – os dois últimos tendo recebido a estatueta principal pouco mais de quatro anos atrás, pelo realismo fantástico de A Forma da Água.
Dispensando histórias de amor épicas e submundos sobrenaturais, O Beco do Pesadelo encontra na degeneração humana o lugar-comum entre todos os seus caminhos, onde cada personagem funciona como um paciente terminal; sem salvação, condenado. Ao se enveredar pela reinvenção de uma trama antiga, Guillermo del Toro se mantém fiel às suas próprias perversões, construindo um universo visualmente rico e espiritualmente pútrido para abarcar seus artistas circenses desesperançosos. E para nós, respeitável público, não há escolha senão aproveitar o espetáculo. Afinal, senhor, nascemos para isso.