Enrico Souto
Filme australiano independente lançado em 2014, O Babadook é um dos longas mais marcantes da história recente do Terror e, a despeito de sua pouca visibilidade, foi um sucesso de crítica, sendo considerado hoje um clássico moderno. Seus méritos narrativos e cinematográficos são incontestáveis, porém, o que realmente o marcou como um ícone da cultura pop foi sua apropriação feita pela comunidade LGBTQIA+. Embora visto por muitos como uma grande piada, esse paralelo com a experiência queer evoca camadas da narrativa que jamais seriam alcançadas em uma leitura mais superficial. E, visto que parte do público médio repudia essa relação, é necessário questionar: a quem pertence uma obra como O Babadook?
Na trama, acompanhamos uma família desajustada que luta para superar um sofrimento profundo. Amelia (Essie Davis) perdeu o marido, Oskar (Benjamin Winspear), em um trágico acidente de carro, enquanto ele a levava para o hospital, onde ela faria trabalho de parto. Mãe solo, e tendo de criar o garoto Samuel (Noah Wiseman) por conta própria durante seis anos, Amelia nunca superou o luto e fazia de tudo para tentar apagar a existência de seu amado: todas as suas coisas ficavam lacradas no sótão, que ela não abria em nenhuma circunstância, e, em qualquer conversa em que Oskar fosse citado, ela imediatamente desviava o assunto.
“Eu superei. Você nem me vê mais falando dele”, Amelia retrucava. Porém, quando menos ela espera, esse fantasma volta a assombrá-la. Samuel cresce e torna-se uma criança desajustada e sem amigos. Começa a ter problemas com colegas da escola e, em casa, desperta um medo por monstros que supostamente o aterrorizam durante a noite, o que aborrece sua mãe. Contudo, esse medo se materializa quando, em uma fatídica noite, o menino pede para Amelia ler um conto de ninar antes que dormisse. Samuel apanha o primeiro livro que vê na estante e, pela primeira vez, nos deparamos com a história de Sr. Babadook.
E então, a frase que abre o livro, “Se está em uma palavra ou em um olhar, você não pode se livrar do Babadook”, se faz verdadeira. O monstro começa a importunar a família e, quanto mais Amelia tenta resistir, mais intensas ficam as manifestações de Babadook. A situação gradativamente se descontrola, consumindo a protagonista física e psicologicamente, até chegar ao ponto em que ela precisa questionar se o melhor para ela e o seu filho é esquecer que o problema existe, ou expô-lo e enfrentá-lo de frente.
A diretora e roteirista do filme, Jennifer Kent, estreou em longas-metragens com O Babadook, e dispunha de uma estrutura deveras modesta. Com um orçamento de somente 2 milhões de dólares, recebendo ainda um apoio de 30 mil dólares através de uma campanha de financiamento coletivo, não havia muito espaço para ocupar com criaturas aterrorizantes feitas em CGI e grandes sequências de efeitos especiais. Kent entende isso e decide investir no que realmente importa em um filme como esse: atmosfera e densidade emocional.
O pilar do longa é o terror psicológico, e é aí onde está seu maior brilho. Jennifer Kent parece se recusar a utilizar as convenções mais batidas do gênero, e decide explorar diferentes ferramentas para construir as sensações que ela deseja transmitir. A trilha sonora é mínima, sendo acionada somente em momentos-chave. Enquanto o uso dos conhecidos jumpscares é quase nulo. O filme até mesmo brinca com essa expectativa, entregando o susto com ‘atraso’, ou não o entregando de forma alguma. Situações de constante tensão, mas que nunca chegam em uma definitiva catarse. O que, na realidade, acaba por impulsionar o medo em sua décima potência.
Devido a essa escolha, Babadook dificilmente aparece para os personagens. Normalmente, ele figura quase como uma sombra, um ser que, mesmo que não possa ser visto, está terminantemente conectado com a sua vítima. Entramos na pele de Amelia e, juntos a ela, absorvemos esse sentimento de impotência e de dúvida, de uma ameaça que não pode ser provada, muito menos impedida (antes de Bird Box usar esses tropos, O Babadook já tinha inventado a roda!). De todo modo, os momentos que demandam o uso de efeitos especiais, como a sequência do acidente de carro no início do filme, ou as breves aparições físicas de Babadook, realmente evidenciam o orçamento limitado da produção, mas fazem bem o seu trabalho.
Durante a sua 1 hora e 29 minutos de duração, acompanhamos de perto a rotina da família. Conhecemos seu entorno, sua rede de apoio e as pessoas que a rodeiam. Mas quem realmente cumpre o papel de carregar o longa nas costas são os dois protagonistas, sobretudo Amelia. A interpretação de Essie Davis é primorosa, e uma das melhores do gênero de horror na última década. Ela encarna o papel da mulher cansada e da mãe desajustada com tamanha autenticidade que em certos momentos esquecemos que trata-se de uma personagem. Amelia se transforma da água pro vinho no decorrer da trama, e Essie faz com que compremos essa mudança de uma maneira que uma atriz menos capacitada não conseguiria.
O que mais transborda da atuação de Essie é como Amelia é uma personagem complexa e multifacetada. Kent foge de romantizações e arquétipos clichês, criando em O Babadook um retrato franco e realista de família e maternidade. Em entrevista para o site Den of Geek, a diretora disserta a respeito: “Eu estava realmente querendo explorar a parentalidade a partir de uma perspectiva muito real. Agora, não estou dizendo que todas nós queremos ir e matar nossos filhos, mas muitas mulheres lutam e sofrem com isso. E é um assunto muito tabu, dizer que a maternidade é tudo menos uma experiência perfeita para as mulheres”.
Amelia não é perfeita. Ela não entende as sensibilidades de seu filho, é negligente com frequência, e deposita todo o peso de seu luto nele, mesmo que inconscientemente. O garoto sequer pode ter uma festa no dia de seu aniversário, já que sua mãe não aguentaria fazer uma comemoração em uma data tão desoladora quanto a da morte de seu marido. Amelia projeta a imagem de Oskar em Samuel, fazendo com que sua relação seja obstruída e os impossibilitando de construir um vínculo saudável.
Antes mesmo de surgir o monstro, não importava o quanto evitasse, a memória de seu marido sempre retornava a ela: seja através de um programa romântico na televisão, ou de um casal no estacionamento do serviço. Diante disso, Amelia deixa com que seu trauma consuma todos os aspectos da sua vida. Ela deixa a escrita, que era sua paixão, e passa a trabalhar em uma área onde ela não sente realização, e resume sua vida aos cuidados de uma criança que apenas escancara ainda mais seus ferimentos. O resultado é que essa angústia, sem ser devidamente abordada e tratada, começa a crescer e a devorá-la por dentro.
Ao se isolar na tentativa de não se machucar, Amelia começa a ferir aqueles que ela mais ama. Se afasta de sua melhor amiga, nega os cuidados de sua vizinha, e passa a gradativamente maltratar Samuel. Nesse sentido, podemos ler O Babadook como uma personificação da depressão e luto da protagonista que, de tanto ser reprimida, implora para ser vista. E, depois de tanto sofrer e causar sofrimento, ela entende que a única maneira de superar seus traumas é colocá-los à tona e domá-los. Assim que ela decide olhar de perto, o Babadook nem parece mais tão ameaçador.
Mas aí entra a dúvida: o que diabos O Babadook tem a ver com a comunidade LGBTQIA+?
As primeiras analogias do filme com a cultura queer que se tem indícios ocorreram no Tumblr. Um post que viralizou na rede social no final de 2016 inferia que o personagem seria homossexual: “Quando qualquer pessoa diz que o Babadook não é abertamente gay é tipo?? Você sequer assistiu ao filme???”. Outra publicação do mesmo ano fazia uma montagem do catálogo da Netflix, colocando o longa na lista de “Filmes LGBT” do site. A brincadeira seguiu, porém apenas tomou a proporção que tem hoje em junho de 2017, Mês da Visibilidade LGBTQIA+, quando a assombração tomou conta de Paradas do Orgulho no mundo todo.
Contudo, isso ainda não responde a uma questão fulcral. Porque o Babadook seria lido como gay? Seja pela suas vestimentas elegantes e pelo seu eventual perfil de “um homem gay que gosta de usar cartolas extravagantes e só quer viver sua vida no subúrbio da Austrália”, ou pela anedota que surge do fato de que o personagem literalmente sai de um armário durante o filme, essa leitura é comumente vista somente como um meme de internet. Ou, no máximo, uma ótima fonte de fantasias animadas para festas. Contudo, na verdade, essa correlação parte de um lugar muito mais profundo. Parte do cerne de sua narrativa.
A esse respeito, o quanto a interpretação de uma história também deriva-se da experiência particular de quem a consome? E, nesse caso, a análise dessa pessoa é menos valiosa por partir de um ponto de vista íntimo e pessoal? É de conhecimento público que nunca foi a intenção de Jennifer Kent criar uma alegoria gay. No entanto, a intenção da autora realmente é tão importante para se entender uma obra? Não seria ela somente uma catalisadora de informações, palavras e signos culturais que a precedem, inseridos em um contexto histórico que, com frequência, vão muito além de decisões artísticas conscientes?
É o que Roland Barthes argumenta em seu ensaio A morte do autor, de 1967. Partindo de uma ótica literária, o sociólogo chega à conclusão de que, a partir do momento em que uma obra sai das mãos de seu autor, ela já não é mais de sua responsabilidade. Para Barthes, entregar ao criador toda a significação da sua arte é impor à Arte um fim, limitando suas inúmeras potencialidades. No fim das contas, a agência é inteira do leitor. E o autor, nesse cenário, torna-se somente mais uma visão em meio a um espectro rico de perspectivas.
“[…] sabemos que, para devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.” – BARTHES, Roland. 2004.
A leitura mais difundida e aceita do filme foi a citada mais acima, de que Babadook seria uma representação corpórea da depressão de Amelia, que luta para reprimi-la. Todavia, qual a distância dessa alegoria para a jornada afetiva de pessoas LGBTQIA+? Para muitos membros da comunidade, nenhuma. Muito do que é retratado no filme relaciona-se intensamente com a angústia de pessoas queer que ainda estão no armário.
Os exemplos para essa leitura são muitos: primeiro, tem-se as semelhanças existentes entre o esforço da protagonista de esconder seu sofrimento e a experiência real de inúmeras pessoas que lutam contra seus prazeres, por terem internalizado durante toda a vida a afirmação deturpada de que esses são desejos execráveis. Podemos tirar essa interpretação também da memorável frase do livro d’O Babadook: “Quanto mais você me nega, mais forte eu fico”, que conversa com a iminente frustração dessa autorepressão e, como resultado, somente a intensificação desses desejos.
De forma mais profunda, existe também a ligação entre a possessão de Babadook sobre Amelia, e sua sucessão de ações agressivas, e a reprodução violenta de uma heterossexualidade compulsória que muitos se submetem por sua própria sobrevivência, machucando aqueles ao seu redor através de uma postura tóxica de autoafirmação. E também a resolução no terceiro ato do filme, como o alcance do entendimento de que a única maneira de conquistar plenitude é entrando em paz com esse desejo, e o aceitando como uma parte de você, como uma peça primordial do quebra-cabeça que o forma como indivíduo.
Nessa interpretação, O Babadook torna-se não uma representação do luto de uma mulher viúva e depressiva, mas uma representação do desejo reprimido de pessoas LGBTQIA+, que não se expressam sexual e afetivamente como o status quo ordena. E, inclusive, Jennifer Kent incentiva categoricamente essa leitura, ainda que não tenha sido parte de sua proposta original. Em suas palavras: “É engraçado, é charmoso, para mim, que a comunidade gay tenha se apegado tanto a ele”. E, em outra oportunidade, ela diz: “eu acho uma loucura e [essa história] apenas o manteve vivo. Pensei ‘ah, seu bastardo’. Ele não quer morrer, então está encontrando maneiras de se tornar relevante”.
A conclusão, portanto, é essa. O Babadook pertence a todo e qualquer um que o leia. E cada um irá o ler a partir de suas individualidades e de seus próprios recortes. Afinal, não poderia ser diferente. Assim como afirma Barthes, é no leitor que toda a multiplicidade cultural e artística de uma obra se reúne. É apenas através do público que uma produção pode adquirir alma. Então, o que seria a transformação de Babadook em ícone gay se não o longa ganhando vida? No fim, a pluralidade de visões e leituras que circundam O Babadook é simplesmente o atestado de sua riqueza como projeto artístico e audiovisual. E, para quem ainda insiste em deslegitimar uma leitura LGBTQIA+ do filme, “O Babadook é gay quando quer, e ele mandou um chupa para você”.