Guilherme Teixeira
“Eu gosto do mentiroso que mente por amor à arte”, declarou nosso saudoso Ariano Suassuna (1927-2014) no trecho de uma entrevista inserida logo no início do filme que tem como base, a mentira. Dirigido por José Eduardo Belmonte e saudando as boas histórias do escritor pernambucano, O Auto da Boa Mentira conta em quatro esquetes, as histórias de Helder (Leandro Hassum), Fabiano (Renato Góes), Pierce (Chris Mason) e Lorena (Cacá Ottoni). O que eles têm em comum? A mentira. A boa mentira. Os quatro contos mostram as diferentes maneiras com que a lorota atua na vida de cada personagem individualmente. O time que forma o elenco do filme ainda conta com Nanda Costa, Cássia Kis, Jesuíta Barbosa, Luís Miranda e outros grandes nomes da Arte brasileira.
O primeiro enredo que nos é apresentado é o do subgerente de RH Helder (Leandro Hassum), que é confundido com o famoso humorista Paulo Mendonça. Deslumbrado com a fama e o assédio dos fãs, Helder assume a identidade do artista e tira vantagens em cima disso. Contudo, ele não imaginava que Paulo estava na mira de Caetana (Nanda Costa), filha de um ex-rival de profissão do humorista. Quando Helder, se dizendo Paulo, conhece a atraente moça num bar de hotel, logo é seduzido pela mesma, que posteriormente o dopa e tenta matá-lo sufocado com um travesseiro no quarto do hotel. Algemado na cama e prestes a morrer asfixiado, o subgerente assume sua verdadeira identidade e consegue se salvar. Uma mentira que quase lhe custou à vida, literalmente. Logo após descobrir o engano, Caetana se desculpa pelo engano, desata a chorar e vai embora.
Ao fim do conto, um misterioso assassinato ocorre no hotel e um segurança define a causa da morte por “Caetana”, e segundo Suassuna, essa mulher é a Morte. Um fato interessante sobre essa esquete é que os fãs, ao abordarem o farsante, enfatizam de que o humorista mudou muito fisicamente após emagrecer, fazendo uma alusão a perda de peso significativa do intérprete.
O segundo esquete do filme conta a história de Fabiano, um rapaz que, ao lado de sua mãe, exuma os ossos de seu falecido pai, com quem nunca se deu bem. Dias depois, um profeta o aborda na rua dizendo que seu pai estava com medo de morrer, porém, Fabiano rebate dizendo que seu pai havia morrido há mais de trinta anos. A surpresa do personagem acontece quando o profeta afirma que quem morreu foi o marido de sua mãe, e não o seu pai. Intrigado com as profecias que ouviu, o filho de Luzia (Cássia Kis) pressiona sua mãe até que a viúva, em um diálogo comovente onde vale ressaltar a maestria e o talento da atriz, confessa o adultério com um palhaço de um circo regional que frequentavam especificamente no dia dos pais.
Disposto a encontrar o palhaço Romeu (Jackson Antunes) – assim se chamava seu suposto pai, Fabiano vai até o circo e flagra o homem sendo ameaçado por um agiota que quer o espaço como forma de pagamento de uma alta dívida. Sensibilizado com angústia de seu pai e agindo com impulsividade, Fabiano entrega a ele um relógio de grande valor financeiro sem consultar sua mãe, que pretendia empenhar o relógio para reformar a jazida de seu falecido. Contudo, o mocinho revela que deu a herança familiar a seu pai e sua mãe se desespera, pois na verdade, o palhaço Romeu era uma franquia de palhaços e o verdadeiro já havia morrido. O mentiroso foge com a joia.
Apesar de ser o melhor dos quatro contos, uma gafe é cometida e passa quase despercebida: O protagonista possui um sotaque nordestino no qual os demais personagens (inclusive sua própria mãe) não aparentam ter. Não houve explicações para essa variação, que soma pontos negativos de coerência para O Auto da Boa Mentira.
Logo após, o público conhece a história de Pierce (Chris Mason). Conhecido por integrar o elenco de séries americanas como Riverdale e Pretty Little Liars: The Perfectionists, o ator britânico tem contribuído com a audiência do filme, levando o público teen à frente das telonas. A mentira que cerca Pierce é criada quando o bon vivant tenta explicar sua ausência no aniversário de seu amigo Zeca (Sérgio Loroza), dono de um bar onde os turistas do mentiroso frequentam.
Para não se indispor com seu amigo e colega de negócios, o gringo inventa que foi assaltado na comunidade, o que indigna o dono de bar. Revoltado com a falta de segurança na comunidade, Zeca procura o chefe da favela, vivido por Jesuíta Barbosa, para encontrar o ladrão. Durante um encontro com Chefia, Pierce inventa características aleatórias para despistar qualquer suspeita, afinal, o assalto era uma farsa.
Mas, o “pai” da comunidade assimila as características com um rapaz que por mais inocente que fosse, leva a culpa e quase perde a vida por isso. Sensibilizado com a confusão que acabara de arrumar, o guia mentiroso confessa a mentira, mostrando no fundo, ser uma boa pessoa. Vale destacar a excelente pronúncia do ator europeu em seu primeiro trabalho em português.
Encerrando o ciclo das boas mentiras de Suassuna, a personagem Lorena (Cacá Ottoni) vive uma situação muito conhecida no cotidiano brasileiro. A fim de se enturmar com seus colegas de trabalho, a estagiária inventa uma série de mentiras, como conhecer e entender a literatura francesa e outras lorotas para impressionar seus superiores. O clímax da mentira acontece quando a jovem escuta uma conversa particular entre seu chefe e sua namorada.
Nessa conversa, Felipe (Johnny Massaro) usa uma expressão francesa usada como apelido interno do casal. A estagiária então, se deslumbra com a elegância da frase e reproduz na frente do grupo em uma típica festa de fim de ano da empresa, crendo ser uma expressão popular entre os franceses. Essa mentira acaba criando uma histeria entre todos na festa. Mediante a toda confusão que acabara de criar, Lorena se embebeda e dá seu vexame final na confraternização, pedindo demissão em público e quebrando um valioso prêmio de cristal. O filme encerra com Lorena sentada na rua absorvendo o surto que acaba de ter e Felipe lhe faz companhia, confessando também não entender nada sobre a literatura francesa e os demais assuntos elitistas.
O Auto da Boa Mentira deixa a desejar no ponto que devia ser seu principal foco: a risada. Dá para contar em uma única mão a quantidade de vezes que o telespectador ri, o que não favorece muito um filme classificado como comédia. O silêncio na sala perdurou até o início do segundo esquete, onde ainda criança, o personagem salta de um telhado acreditando ser um pássaro. Depois disso, algumas cadeiras começaram a esvaziar – fora as cochiladas tentadoras no escuro do cinema, uma lástima para um projeto que conta com nomes do alto escalão da dramaturgia brasileira.
A escalação e o texto de João Falcão, Tatiana Maciel e Célio Porto são impecáveis, contudo, peca no exagero do humor refinado e conceitual ao abordar uma cultura onde a “farofa” reina. Entretanto é injusto pontuar as falhas do longa-metragem e não exaltar o tributo a um dos maiores escritores do Brasil e suas inúmeras facetas, mostrando sempre ser um mentiroso do bem. Em tempos onde a cultura e o Cinema brasileiro são tão desvalorizados, mergulhar em um universo tão mágico e tão fértil como o de Suassuna, nos faz lembrar do que temos de melhor no Brasil, a Arte e o “jeitinho brasileiro” de levar a vida.