O Apanhador no Campo de Centeio: a voz do jovem que nunca se cala

Cultuado livro de J.D. Salinger completa 70 anos em 2021; nova tradução chegou ao mercado editorial em 2019.

 

A imagem é uma foto da capa do livro O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. Na capa, há o desenho de um cavalo vermelho, com uma lança atravessando o seu corpo. Na parte superior, acima do cavalo, há o título do livro, escrito em um fundo vermelho com uma fonte de cor amarela. Abaixo do cavalo, na parte inferior direita, sob um fundo branco, está o nome do autor em fonte de cor preta.
A mais recente edição brasileira foi publicada pela editora Todavia, em 2019, com tradução de Caetano Galindo e capa da 1ª edição (Foto: Reprodução)

Bruno Andrade

“Se você quer mesmo ouvir a história toda…” — então lá vai. Em 1951, um certo feito literário mudou os rumos da literatura produzida nos EUA e, posteriormente, na literatura mundial. Jerome David Salinger, veterano de guerra e já conhecido no cenário literário após a publicação de alguns contos, lançou O Apanhador no Campo de Centeio, livro que, em pouco tempo, se transformou em um clássico norte-americano, e que completa 70 anos no dia 16 de julho.

Pela primeira vez — e de maneira séria —, um autor colocava no centro do debate na cultura do pós-guerra a figura do adolescente. O protagonista do livro, Holden Caulfield, é um jovem abastado de 17 anos. A voz de Holden é autêntica e quer a qualquer custo acabar com a falsidade no mundo, buscando o caminho para a verdade. A revolta é presente em toda a narrativa e, embora tenha sido escrita para o público adulto, tornou-se relevante entre os jovens. O livro é escrito em primeira pessoa, o que em diversos momentos faz com que se tenha raiva do protagonista, ao mesmo tempo em que se tem uma identificação com suas reivindicações. 

O Apanhador no Campo de Centeio narra apenas um final de semana na vida de Caulfield, que retorna para a casa de sua família em Nova York após ter sido expulso do colégio interno. Ao longo do percurso, o jovem reflete sobre sua curta vida e, com medo de enfrentar os pais e dizer que havia sido expulso, parte à procura de amigos e um ex-professor para pedir conselhos. O romance aborda questões consideradas tabus na época, como homossexualidade, alienação, identidade e inocência, carregado de uma crítica à superficialidade da sociedade.

A imagem é uma fotografia em preto e branco do autor J.D. Salinger. Salinger era um homem branco de cabelos curtos lisos, formando um pequeno topete. Ele está vestindo um terno com uma camisa e gravata. Atrás dele, é possível ver uma estante de livros.
J.D. Salinger ficou recluso de 1953 até o fim de sua vida, em 2010 (Foto: Reprodução)

Existe um certo tipo de abismo entre Holden e o amadurecimento. No livro, há uma passagem emblemática em que o protagonista se lembra de como o museu é fascinante e confortável por manter as coisas do jeito que são. Esse trecho evidencia o medo que ele carregava de envelhecer, pois perderia o acesso à verdadeira realidade.

Holden não chega a ser o baderneiro típico dos filmes norte-americanos. Ele é um jovem observador e revoltado, que não quer fazer nada por obrigação, não quer se sentir sozinho ou demonstrar que, no fundo, é uma criatura frágil. Embora hoje se tenha a imagem do adolescente rebelde ligada à cultura punk, o jovem de terninho e chapéu de caça vermelho mantém o diálogo com problemas muito maiores que seu estilo.

São questões sobre a existência humana e a difícil convivência em um mundo onde tudo pode ser falso. A identificação com Caulfield vem quando percebemos que a nossa realidade é bem diferente daquela em que ele vivia, mas a vontade de mudar a própria vida e não querer viver sob regras impostas continua existindo.

A imagem é uma fotografia em preto e branco do autor J. D. Salinger. Na imagem, o autor está sentado ao lado de uma mesa, no que aparenta ser um jardim. Salinger era um homem branco de cabelos curtos lisos e bigode. Ele está vestindo uma camisa de mangas compridas e uma calça larga. Seu braço direito está apoiado em cima da mesa, segurando o que aparenta ser um lápis, ao lado de um caderno. E o seu braço esquerdo está apoiado em sua perna. O escritor está olhando diretamente para a câmera.
Na biografia de David Shields e Shane Salerno, há o depoimento de veteranos afirmando que não podiam descansar durante a guerra, pois, se assim fizessem, Salinger começaria a escrever (Foto: Reprodução)

Em vários momentos, Caulfield também demonstra todo o seu desprezo pelos adultos, colocando-os como falsos e desagradáveis. Em contrapartida, a maneira como trata os mais jovens é repleta de carinho, como se enxergasse a verdadeira pureza das crianças — em especial Phoebe, sua irmã mais nova. Para ele, o único momento da vida em que se vive verdadeiramente é a infância.

Salinger começou a escrever o romance com pouco mais de 20 anos, e as alterações eram constantes. Alguns dos rascunhos foram destruídos na Segunda Guerra (onde participou como sargento no desembarque da Normandia), e o autor precisou reescrever vários trechos. Durante a batalha, Jerome manteve sua repulsa com o falso idealismo aplicado pelo governo norte-americano em relação aos combatentes; essa repulsa depois se tornaria a principal voz de Holden.

Com o fim da guerra, os jovens sobreviventes voltaram para os EUA com seus sonhos destroçados, e Salinger soube captar esse momento. O livro teve um sucesso tão grande que alguns críticos argumentam que foi o motivo da reclusão do autor — que durou de 1953 até o fim de sua vida —, além das situações curiosas que O Apanhador no Campo de Centeio esteve envolvido. Em 1980, o assassino de John Lennon, Mark Chapman, afirmou que cometeu o crime após a leitura do livro e que ele próprio seria a personificação de Holden. O atirador que tentou matar Ronald Reagan também alegou que tirou da obra sua motivação.

A imagem é uma fotografia do livro O Apanhador no Campo de Centeio aberto em sua capa e quarta capa. Ao lado esquerdo, na quarta capa, há uma fotografia do autor J. D. Salinger. Enquanto, à direita, há a imagem da capa e orelha do livro.
A primeira edição do livro trazia uma foto de Salinger na quarta capa e um resumo na orelha do livro; a experiência foi traumatizante e ele obrigou a retirada nas edições seguintes, alegando que os leitores não poderiam ter interferência na leitura (Foto: Reprodução)

Mas a bem da verdade, seria injusto atribuir somente esses acontecimentos à reclusão de Salinger. Com o passar dos anos, em especial durante a guerra, ele desenvolveu um interesse pela cultura do Zen Budismo, e a fama era uma pedra no sapato nesse estilo de vida. As coisas deveriam ser do jeito que são e os livros não precisavam de foto do autor ou textos de apoio, apenas as páginas escritas pelo próprio, o texto em seu estado “puro”. 

Esse é um dos pontos mais curiosos entre o autor e o personagem: diferente de Salinger, Holden era um inconformado por natureza; talvez a construção dele seja impulsionada justamente por esse motivo. Sendo o oposto (ou complemento, se pensarmos no Yin-yang do taoísmo) de Holden, Jerome poderia evidenciar os problemas que os jovens estavam passando depois do impacto da Segunda Guerra, e ainda apontar o dedo para a enorme negligência e hipocrisia da sociedade. O american way of life foi totalmente pulverizado nas páginas do livro.

O Apanhador é o único romance que J.D. Salinger escreveu, ao lado dos contos Nove Histórias (1953) e das novelas Franny & Zooey (1961) e Erguei bem alto a viga, carpinteiros & Seymour — uma introdução (1963). Todas essas produções foram publicadas individualmente na revista The New Yorker, com suas respectivas antologias editadas posteriormente, sendo O Apanhador no Campo de Centeio a única publicação inédita do autor. 

A imagem é uma fotografia em preto e branco de uma fila de soldados à caminho da guerra. Em segundo, da esquerda para a direita, está J. D. Salinger. O escritor está vestindo um uniforme de soldado, com uma camisa de manga comprida, calça, capacete e uma mochila nas costas. Ele segura em seu braço esquerdo o que aparenta ser um casaco. Todos os outros soldados da fila estão vestidos da mesma forma.
Salinger, segundo da esquerda para a direita, à caminho da guerra (Foto: Reprodução)

A história de Holden é, de fato, única na trajetória de Salinger (pelo menos até o momento, já que existem rumores de uma publicação de inéditos do autor). Não somente na forma como o livro foi escrito, na prosódia de um adolescente, mas pelo fato de que seu romance é o único a apresentar os Caulfield, enquanto os contos e novelas seguem os passos da disfuncional família Glass (influência de Wes Anderson no filme Os Excêntricos Tenenbaums). 

J.D. Salinger faleceu de causas naturais em 27 de janeiro de 2010, aos 91 anos. O Apanhador no Campo de Centeio é um alerta sobre o amadurecimento, um ato de libertação, e a voz de Holden Caulfield, o adolescente rebelde, deve continuar ecoando por muito tempo.

Deixe uma resposta