Nathália Mendes
O que você faria se descobrisse um meteoro vindo em sua direção? Diminuindo a distância que o separa do planeta Terra a cada vez que você respira, ou na medida em que lê essas palavras? O diretor Adam McKay achou que seria apropriado rir das nossas caras de tacho. E assim, nasceu Não Olhe para Cima (Don’t Look Up), com seu elenco estrelado vomitando o iminente fim da humanidade. O que você faria então, mediante tamanho desastre? Desviaria o olhar, vestiria seu uniforme de imbecil, e abriria o TikTok para ser feliz novamente vendo vídeos de cachorros fofos, com certeza.
Não é lá muito divertido assistir Dr. Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) travando uma batalha para fazer o mundo acreditar na Ciência. Ao ter o negacionismo científico como o princípio de toda a narrativa, o longa está tão próximo da realidade que a piada se transforma em um bolo no estômago, fazendo cada parte do corpo formigar conforme se assiste. McKay, que venceu um prêmio por A Grande Aposta e voltou a ser lembrado por Vice, não precisou de sacadas geniais para incomodar, nem para receber suas 4 indicações ao Oscar 2022. Longe de ser uma crítica profunda revestida de adereços, o diretor alugou um triplex na cabeça dos espectadores por derramar verdades às claras.
Nos primeiros minutos de Não Olhe para Cima o choque transborda nos personagens. Se trata, claramente, de uma catástrofe, e o espectador compartilha da sensação apocalíptica. Até que McKay coloca suas primeiras artimanhas na tela, e transforma o ligeiro terror em uma sátira de puro escárnio. Tirando sarro do que a sociedade se tornou, é evidente o menosprezo da narrativa pelos poderes e poderosos que governam. Seja mostrando órgãos estadunidenses – com emblemas ridículos – que não deveriam existir, ou com um general do Pentágono que cobra pelos lanches gratuitos da Casa Branca, é prazeroso e angustiante rir de quem comanda.
O paralelo com os últimos acontecimentos na humanidade também irrita. Estivemos tempo demais presos no Metaverso, fabricando notas de repúdio contra o negacionismo científico enquanto uma pandemia explodia do lado de fora das telas. Assistir a tentativa frustrante dos protagonistas em contar às pessoas que em torno de 6 meses o planeta seria extinto, é igual precisar de programas de vacinação que paguem a população para se imunizar em pleno século 21. Mas, mesmo com as doses em dia por vontade própria, nós estamos junto dos personagens de Não Olhe para Cima, filme que se tornou o mais assistido da Netflix e é um de seus dois representantes na categoria principal, remando contra a maré de presidentas que querem “sentar e esperar”.
A personagem de Meryl Streep, reconhecida pelo Sindicato de Atores junto dos companheiros na disputa de Melhor Elenco, é uma junção grotesca da grande maioria de líderes que ascenderam nos últimos anos ao redor do mundo. Entre Jair Bolsonaro e Donald Trump, a presidenta Orlean é um óbvio retrato de como a sociedade tem aplaudido o ridículo, e idolatrado políticos que sequer dão o trabalho de esconder seus conluios. Muito pelo contrário, ao lado do filho Jason (Jonah Hill) – que tranquilamente se parece com os filhos do chefe do gabinete brasileiro -, exemplificam que o poder tem estado nas mãos de grandes personalidades narcisistas que andam de motoca. No jogo político do entretenimento, não há como a catástrofe ganhar.
Um dos grandes momentos do longa de McKay é de Leonardo DiCaprio. Quando seu personagem Randall Mindy enxerga seu papel de imbecil – incluindo ao fazer comerciais infantis sobre o meteoro -, ele desengasga um discurso agoniante em rede nacional, que facilmente sairia da boca de qualquer um. Em outro paralelo com a realidade, é fácil se sentir tão sufocado quanto o cientista, precisando provar às pessoas que a destruição é iminente e real. Junto do esforço de poderosos em desacreditar o que não lhes é financeiramente conveniente, a sociedade parece não querer enxergar nem se a evidência estiver à frente. Ou, no caso, acima de suas cabeças, descendo em sua direção.
Entre a briga por Roteiro Original, assinado por McKay em parceria com David Sirota, e a de Trilha Sonora Original com créditos para Nicholas Britell (de Succession), a indicação mais merecida de Não Olhe para Cima é em Melhor Montagem para Hank Corwin, pois o veloz jogo de cortes e de cenas no meio de falas é brilhante. A rapidez com que o editor muda a câmera ou pula para a próxima parte do roteiro consegue transmitir a sensação de instantaneidade da vida atual. Bombardeados de informações na mídia e internet, a sensação realista é de inconstância no nosso dia a dia, um borrão atravessado por acontecimentos em cada canto do mundo. E, mesmo assim, a entrega do prêmio da categoria foi cortada da cerimônia ao vivo do Oscar, apagando artistas importantes – como o próprio Corwin relatou. Esse é o tamanho da controvérsia em ter um filme que zomba da indústria cinematográfica, concorrendo na mesma.
A necessidade de parte da crítica de que o longa de McKay fosse revestido de opiniões bem pensadas é burrice. Toda a estrutura da narrativa, os memes que invadem as cenas, e o próprio tom de comédia meia boca, é completamente condizente com o deslocamento da realidade que vivemos. Nem uma catástrofe em tempos modernos com milhões de mortos em todo o planeta foi capaz de deixar a humanidade mais consciente. Muito possivelmente, os esforços de ambientalistas e jornalistas sérios não serão suficientes, que dirá de um diretor de Cinema. Por isso, contar uma piada basta.
Parece irreversível, assim como o desfecho do filme, que sejamos salvo dessa situação. De fato, não merecemos ser salvos, e Não Olhe para Cima exemplifica os motivos pelos quais a espécie merece a extinção. Quem seria salvo, afinal de contas? Quais pessoas embarcariam em uma espaçonave para viver fora do planeta Terra? É plausível que bilionários, como Peter Isherwell (Mark Rylance) – vulgo a mistura de Steve Jobs e Elon Musk -, da tecnologia construam foguetes para se divertirem durante alguns minutos em órbita?
Não olhe para cima, seu imbecil. Enquanto você foge da realidade, o sistema se reforça, embrenhando seus tentáculos muito além da altura de nossas cabeças. E, na verdade, ninguém de fato olha para cima. Temos descido o precipício cantarolando. Não há comédia ou entretenimento que sobreviva à catástrofe existente aqui embaixo, onde nos encontramos anestesiados. Somos – ou estamos – todos imbecis. E não precisou de muito para sentir um incômodo angustiante com alguém rindo do buraco sem fundo em que nos enfiamos.