Vitória Gomez
Mussum, o Filmis chegou às telas em uma safra fértil para as personalidades brasileiras: alguns meses depois de Nosso Sonho, junto do documentário Elis e Tom, Só Tinha de Ser com Você e Meu Nome é Gal, e pouco antes de Meu Sangue Ferve por Você. Haja cultura e diversidade em um ano em que, independentemente dos desempenhos individuais de cada obra, o Cinema nacional mostrou a potência que é – e que poderia ser ainda maior com políticas públicas que verdadeiramente valorizassem esse potencial. Para melhorar, a envolvente cinebiografia do sambista, ator e comediante Mussum, eternamente conhecido pelo seu papel como um dOs Trapalhões, arranca risadas fáceis e, não por menos, estreou com seis Kikitos do Festival da Gramado na bagagem, além de passagens pelo Festival do Rio 2023 e pela 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na seção Mostra Brasil.
O Filmis veio com um desafio: adaptar para as telas, em pouco menos de duas horas, a vida de uma personalidade polivalente, que se destacou na Música, na TV e no Cinema. Logo aqui, o roteiro de Paulo Cursino toma uma decisão importante de focar menos no extenso currículo pelo qual o profissional é conhecido e mais em Antônio Carlos Bernardes Gomes, nome real de Mussum. É por esse título (ou melhor, Carlinhos) que ele era conhecido em sua faceta artística preferida, a de sambista, e o apelido da Televisão vira coadjuvante em uma história que mostra os bastidores pessoais do Trapalhão.
Mussum, o Filmis é pau para toda obra: entre comédia e drama, a obra entrega excelência, risadas e emoções. Além de transitar entre os dois gêneros, o longa-metragem – o primeiro de Silvio Guindane na direção -, passeia entre a vida pessoal de Carlinhos desde a infância até o auge da carreira na Rede Globo, esquivando até de alguns clichês. Por exemplo, a origem humilde do menino, que cresceu com uma mãe solo diarista e sem pai por perto no Rio de Janeiro, ganha tons de comédia com uma mãe mestre em arrancar sorrisos. Interpretada por Cacau Protásio em um primeiro momento, Malvina ensina o filho que estudar é o mais importante na vida e que, como jogador de futebol ou sambista, ele não vai dar certo.
O erro é claro. O doce Carlinhos, até aqui vivido por um carismático Thawan Lucas Bandeira, vai para um colégio interno e vira militar. Pelo menos, isso é o que a versão jovem adulta de Yuri Marçal conta. Cheio de caras e bocas, o protagonista é apresentado como um sambista de primeira e, mesmo que minta para mãe sobre seu paradeiro, ganha a vida tocando junto de Elza Soares e fazendo mais dinheiro do que ele poderia imaginar, o que o faz largar o Exército e investir de vez na carreira. Mussum, o Filmis é econômico em como ele chegou até ali, mas, mais para frente, mostra que a economia na verdade era sucintez.
Fato é: a formação que tocou com a rainha da Música brasileira era Os Originais do Samba, grupo de Antônio Carlos que se tornou notório no gênero musical. No entanto, por mais que Carlinhos estivesse satisfeito com o título de musicista dividindo uma roda de samba com Cartola, a sorte (ou o acaso) o chamou. Mussum mostra como, em uma apresentação na Rede Globo, o artista foi notado pelo diretor e, de um segundo para o outro, estava dividindo o palco com Grande Otelo e ganhando o apelido que o acompanharia pelo resto de seus dias.
Nesse momento, Carlinhos já é Ailton Graça. As transições cheias de estilo, que combinam com o tom descontraído que o longa propõe, engolem alguns eventos importantes da vida de Mussum, sem um controle certo do tempo. Porém, o roteiro admite (e acerta) que não tenta abraçar o mundo com as mãos. Passagens como o primeiro e o segundo casamento do artista, sua relação com os filhos e até o início da colaboração com a Estação Primeira de Mangueira passam batido, mas compensam o espectador com outros momentos igualmente emocionantes. É impossível não se emocionar com o pequeno ensinando a mãe a escrever o nome ou sentir que está vendo a história se desenrolando ao testemunhar o comediante e a cantora Alcione (Clarice Paixão) no mesmo quadro, ou Chico Anysio (Vanderlei Bernardino) criando o dialeto que deixou o personagem caricato na Escolinha do professor Raimundo.
Quem carrega toda essa emoção é Graça. O veterano da TV e do Cinema fecha o trio de ouro com a versão mais velha de Mussum, vivendo sua ascensão na frente das câmeras e na Música, desde a descoberta até a crise no grupo de samba e a entradas nOs Trapalhões. O filme deixa claro como o carisma e o bom humor de Antônio Carlos – e não Mussum – o alçou ao estrelato, chamando atenção inclusive de Anysio e Renato Aragão (Gero Camilo), que posteriormente o convidaria para integrar o quarteto mais famoso do domingo. Nisso, o ator igualmente carismático usa da sua maestria para preencher todos os espaços em que adentra, seja pela extravagância de sua risada, seu jeito cômico e magnético de falar ou por sua personalidade real, que o levaria a conflitos pessoais.
Tais conflitos, inclusive, ganham mais ou menos importância dentro das quase duas horas. A trama elege o que prioriza, deixando um quê de dúvida sobre o que ficou de fora e o que foi romantizado na vida de Mussum para as telas. A crise no primeiro casamento e a paternidade do artista, por exemplo, recebem menos atenção do que as brigas dentro do grupo musical ou entre Trapalhões em ascensão. Já o racismo aparece de forma sutil, mas a comédia não esquece do tom social: Carlinhos tem um letramento racial desde a infância, graças à mãe, e já mais velho pontua situações incômodas às quais é submetido dentro do programa de TV no domingo.
O longa se balanceia e se redime em outros pontos. Recriando as cenas do programa na TV e das performances dOs Originais do Samba, trazendo figurinos da época e incluindo grandes nomes da cultura popular brasileira, Mussum, o Filmis acerta na nostalgia, na identificação da cultura nacional e na dinamicidade, deixando a própria história se contar. Afinal, até os mais novos sabem quem é Didi, Boni ou Alcione.
Já um dos pontos altos da sucintez do roteiro é o foco especial entre o conflito de interesses de Antônio Carlos e a relação com a mãe. Mussum, o Filmis faz jus à carreira de sambista do comediante e mostra como ele optou continuar na TV, mas sempre sonhando em retornar ao samba. Já na relação com a matriarca, a transição da juventude para a idade adulta traz Neusa Borges como a versão mais velha de Malvina. O retrato do afeto entre mãe e filho, com cenas comoventes toda vez que Graça e Borges contracenam, mostram que o Filmis realmente não é sobre a carreira de Mussum, mas quem sempre esteve por trás dela.
Alguns clichês são inevitáveis em todos os gêneros e, em cinebiografias, a tentativa de conectar a vida do artista retratado com o público pode enforcar a obra, criando momentos de emoção que simplesmente não vão para frente. Talvez por se tratar de uma história nacional e tão próxima de casa (ou melhor, da TV da sala), Mussum, o Filmis tem tudo para encantar qualquer audiência – ela só tem que ser corajosa o suficiente para deixar a Marvel de lado e valorizar o Cinema e as personalidades brasileiras.