Raquel Dutra
A raiz que busca um solo para se firmar, o sonho que busca um meio de se realizar e o Cinema que busca um espaço para se expressar. Assim é Minari: tão belo, suave e poderoso quanto o fenômeno mais fundamental da natureza, tão feliz quanto o processo mais gratificante da experiência humana, e tão transformador quanto o ato de criar seu próprio caminho. O drama familiar dirigido e roteirizado por Lee Isaac Chung se destaca dentre muitos filmes ambiciosos, fechados e maquiados com sua narrativa delicada, representativa e verdadeira. Encantando em absolutamente todos os lugares que passou desde sua estreia no Festival de Sundance em janeiro de 2020, o filme chega em 2021 representando uma série de narrativas e existências que não precisam e nem querem gritar em obras de estruturas grandiosas para serem ouvidas. Apenas desejam encontrar seu espaço para existir.
Isso se aplica tanto ao seu conteúdo narrativo quanto à sua forma de realização. Minari procura germinar uma história singela sobre sonhos e raízes. Seu cenário é a zona rural de Arkansas, nos Estados Unidos da década de 80. Seus personagens são uma família de imigrantes e seu pontapé inicial é uma mudança que Jacob (Steven Yeun), Monica (Ye-ri Han), Anne (Noel Cho) e David (Alan Kim) fazem de uma ponta à outra do país em busca de seus sonhos, autonomia e felicidade. Sua inspiração? A vida do seu criador, que também em meados de 1980, tentava se adaptar a uma nova realidade repleta de promessas, e que em 2020 tentou pela última vez – e foi muito bem-sucedido, se ainda for preciso dizer – a realização de seu Cinema.
Não é preciso ir longe para entender porque Minari é tão especial. Representatividade, afeto, família, sonhos, desafios, beleza… Tudo isso pode ser encontrado nos 99% da humanidade e também dentro e fora, na superfície e na profundidade, e antes, durante e depois do filme. Partindo de um pretexto simples de um lugar profundamente pessoal, ele ressoa de todas as formas que o Cinema permite, atingindo uma esfera surpreendentemente universal.
O fenômeno acontece no exato núcleo da obra, composto objetivamente pelo mesmo contexto em que Lee Isaac Chung viveu parte de sua infância: uma família coreano-americana que deixa tudo o que tem para trás em busca de realização e melhores condições de vida. Subjetivamente, está todo o resto: na realidade já difícil agravada pelo racismo e pelas dinâmicas sociais e econômicas, eles tentam encontrar seu lugar, tanto no mundo externo, quanto dentro do próprio lar.
Os debates decorrentes de construir uma história totalmente firmada na vivência de um grupo marginalizado não são deixados de lado, e nem gritados, concordando com a intenção maior do filme e com todo o resto do roteiro, que é sempre sutil e caminha a passos leves. Algo que pode incomodar alguns, mas a escrita íntima de Chung sabe o que faz com algo vivido na própria pele. E a última coisa que o criador quer é o iluminar de mais ou o aguar de menos, atrapalhando assim o crescimento de seu Minari.
Metáfora essa que se transforma no estalo mais genial e delicioso do filme através da alma da narrativa, mais conhecida como a 5ª pessoa da família, mais conhecida como Soonja, mais conhecida como a vovó de Minari. A personagem de Yuh-Jung Youn vem da Coreia para elevar a história e ajudar a cuidar dos netos, visto que Jacob e Monica trabalham numa granja da cidade e depois cumprem uma terceira jornada: ele na fazenda dos seus sonhos e ela administrando a casa.
Ela traz consigo alguns presentes coreanos para a família, que há anos não pisa na terra natal. Dentre eles, está um broto de minari: um tempero típico do país que Soonja importa para o solo americano, e a analogia que floresce a riqueza das entrelinhas do filme. A raiz, a distância de casa, o adaptar-se a um novo contexto, o compreender um ao outro, a expectativa de vingar, a esperança de vida… Em tudo de Minari se vê um minari.
Antes que nosso raciocínio imagine a possibilidade de concluir o filme como algo não-verbal demais, suave demais ou até seminal demais, Lee Isaac Chung confirma que estamos sim no audiovisual e que estamos sim numa narrativa estruturada e semeia suas reflexões na carne do filme. Agora, outra instância fundamental e encantadora de Minari começa a germinar, fertilizada pela sintonia do roteiro, direção e elenco que cultiva a relação entre a avó e os netos.
Demonstrando pleno domínio dos rumos de sua história, Minari aproveita o momento de sustentar sua narrativa para surpreender mais uma vez, agora brincando com seus efeitos e expectativas. Presentes, cuidados e comidinhas enganam a nós e a David: a avó escrita por Chung e brilhantemente vivida por Yuh-Jung Youn está longe de ser uma matriarca ‘normal’ aos ideias que o pequeno, nascido, crescido e educado na cultura dos Estado Unidos, e que nós, os espectadores americanos, conhecemos.
Soonja não sabe fazer cookies, é meio desajeitada e completamente desbocada, o que causa estranhamento no personagem do prodígio Alan Kim, comprometendo a relação dos dois. Pelas beiradas, a esperteza de ambos (Soonja, David e Chung) sobressai a teimosia (agora só dos personagens) e vislumbra o equilíbrio. David adora explorar o ambiente e a avó tem algo a semear, afinal. Assim, eles plantam a raiz de minari juntos ao mesmo tempo em que tentam se adaptar um ao outro e encontrar sua própria maneira de se relacionar.
O desdobramento disso equilibra a relação entre o filme e o espectador com algo que é exatamente o que gostaríamos de ver. Soonja e David roubam todas as atenções de Minari, seja numa relação de amizade marcada pelas artes que aprontam juntos e das pérolas que soltam na companhia um do outro, seja no vínculo familiar de avó e neto, que vence as diferenças culturais frutificando momentos emocionantes de carinho, cuidado e incentivo.
É fato que David e Soonja são o coração de Minari, mas o filme não seria tudo o que é sem a excelência completa de seus personagens, especialmente a de quem – teoricamente – é o protagonista. O Jacob de Steven Yeun e de Lee Isaac Chung é dono de um dos combos de personalidade mais interessantes da ficção. Sonhador (e por isso, avoado e apaixonado), determinado (e por isso, ousado e orgulhoso) e consciente (e por isso, ainda responsável e preocupado), o pai está decidido a fazer valer todos os esforços que empregou junto da família, criando inúmeros conflitos e se perdendo com o peso do rótulo de chefe da casa.
Monica, por sua vez, é a razão, que exausta, se transforma em algo à flor da pele de Ye-ri Han. Cansada de viver na incerteza e sobrecarregada com tantas preocupações e responsabilidades para gerenciar enquanto Jacob sacrifica a família e corre atrás do sonho, a personagem é visivelmente fragilizada pelas condições e pela falta de perspectiva de melhora. É nela também que está um dos aspectos mais doídos de Minari, que fala sobre a sensação de deslocamento cultural, figurado enquanto Monica se emociona tateando, cheirando e observando os artigos que sua mãe traz da Coreia, e quando a mesma insiste em visitar a igreja na esperança de encontrar seus similares, se frustrando ao topar com uma maioria branca e episódios sutis de racismo e xenofobia no templo.
E se alguém ainda questionar a importância da personagem escrita com o mesmo esmero que Chung empregou em todos os outros, existe ainda mais uma razão para apreciar a presença de Monica e exaltar a entrega de Ye-ri-Han. A atriz trabalha a complexidade emocional da mãe de Minari num processo de quase lapidação, construindo uma comunicação corporal na personagem que é emocionante e magistral. É só prestar atenção em seus olhares e interações com o marido, em suas mãos e interações com os filhos, e em sua postura e interações com o ambiente, e assim, sentir e compreender seus motivos.
Completando o quinteto, a irmã mais velha contrasta fielmente com o mais novo. Ambos são crianças independentes, que aprenderam a lidar com responsabilidades desde muito cedo. Anne, no entanto, é a primogênita perfeita. Madura com um fundo de resignação, Noel Cho ensaia em sua personagem os mesmos sentimentos e reações que a mãe, criando com Monica uma relação emocional muito especial em tela, que inclusive, tece também a ligação com a Coreia.
Outro artifício do filme de Lee Isaac Chung é a ausência de marcação objetiva do tempo. A plantação nos diz em que pé estamos, e ela é instável, repleta de altos e baixos. A vida de nossos personagens também. A nossa também. Torcemos pela realização de Jacob, mas entendemos as consequências daquilo para a família e sentimos a dor e agonia de Monica. E no clímax, Minari revela o quão penetrante é, ao nos mostrar tão envolvidos com a história que nos percebemos exatamente como eles, sem saber o que fazer.
Mesmo com toda a complexidade narrativa, riqueza de significados e densidade subjetiva, Minari não se transforma em nenhum momento num filme carregado e difícil de digerir. A proximidade das câmeras dirigidas por Lachlan Milne nunca expõe seus personagens, mas apreende ligeiramente seus olhares, carregados da bagagem emocional, mas também preenchidos de carinho e verdade. Quando não está observando a família, a fotografia passeia pelos cenários bucólicos, procurando curiosa por beleza e liberdade.
Tudo se abraça nas cores quentes, divertidas e vivas da edição de Harry Yoon, trazendo uma sensação reconfortante e familiar e conversando com a sinceridade que o filme inspira. A isso, soma-se também a trilha sonora de Emile Mosseri, que confirma em notas musicais o valor do filme de Lee Isaac Chung: Minari é uma obra de amor e com amor, de alma e com alma, de vida e com vida.
E não é só quem assiste que se derrete de amores pela maravilha do trabalho final do filme. A famigerada e irredutível Academia também caiu em seus encantos e guardou para ele seis indicações no Oscar 2021, onde a produção é uma das mais indicadas da vez. Para Lee Isaac Chung, são duas nomeações, nas disputadas Melhor Direção e Melhor Roteiro Original. Na categoria principal, o drama também está presente concorrendo pelo título de Melhor Filme no nome de Christina Oh (produtora de Okja e Ad Astra), e que trabalhou em Minari junto com Dede Gardner e Jeremy Kleiner (ambos responsáveis pelos Oscars de 12 Anos de Escravidão e Moonlight: Sob a Luz do Luar).
A premiação mais importante do Cinema Ocidental também foi lugar para Minari fazer história através da atuação de Yuh-Jung Youn. A querida vovó é a primeira sul-coreana indicada ao Oscar, encontrando seu merecidíssimo reconhecimento na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante. Provando a importância e excelência do elenco, o maravilhoso Steven Yeun (querido por The Walking Dead) também chegou na seleção final dos nomeados a Melhor Ator como o primeiro coreano-americano indicado na categoria. E testificando a beleza da produção, Emile Mosseri também figura dentre os considerados para a estatueta de Melhor Trilha Sonora Original.
Só que Lee Isac Chung viveu muita coisa antes de assistir a aclamação de sua Arte. Depois de se formar em Ecologia na Universidade de Yale, ele emendou Medicina mas acabou como Mestre em Cinema pela Universidade de Utah em 2004. Com seu longa de estreia Munyurangabo, ele até viu o que poderia ser um início, com a aprovação do filme na Seleção Oficial de Cannes em 2007 e em Berlim e Toronto nos anos seguintes, mas os dois que o seguiram (Lucky Life, de 2010 e Abigail Harm, de 2012) não encontraram a mesma recepção.
As tentativas frustradas bateram forte na perspectiva de vida de Chung, que se aproximando dos 40 anos, sentia a necessidade de uma segurança impossível de se encontrar enquanto tentante da Sétima Arte, especialmente numa terra dominada por grandes produtoras e nomes já consolidados. Ademais, era importante para o diretor, filho de imigrantes coreanos nascido em Colorado, nos EUA, que sua filha tivesse contato com o país natal de sua família.
Então, o diretor entendeu que o fazer Cinema talvez não fosse seu lugar e passou para outra instância do assunto, agarrando uma oportunidade de ser professor em sua área de formação na Coreia do Sul. Mas antes de recomeçar sua vida no outro lado do mundo, ele lançou uma última semente em solo americano, que floresceu nas mãos de sua agente Christina Chou, cresceu junto das produtoras Plan B e A24, e se transformou no Minari que vemos hoje.
O plano de fundo da produção transforma a obra, que já é extraordinária, em algo ainda mais especial e significativo, reforçando exatamente os pontos que são trabalhados dentro do filme. Raízes, sonho e família tomam cada uma de suas construções, cada um de seus detalhes e cada uma de suas etapas. Assim, dizer que Minari transpira vida em tudo o que faz e é se transforma em algo literal, nada figurativo.
Minari faz o público se perder entre todas as suas camadas para mostrar que as tramas da nossa existência são todas muito complexas, e faz isso não para nos desesperar, mas para nos acalmar e incentivar. O sonho pode estar muito perto mas ao mesmo tempo muito longe. A única coisa que se sabe é que a vida não para e o sonho também não. As sementes em germinação? Também não.
Por fim, se percebe que, sobre Minari, não tem muito o que entender. Na verdade, ele constrange os que depositam todo o seu valor numa experiência intelectual. Ele também não quer palestrar sobre seus assuntos nem impressionar com referências, porque ele tem mais a dizer do que o que as palavras podem compreender. Aqui, a coisa é sobre sentir, e por isso é que a experiência e a aclamação são universais, num gesto muito belo de igualdade, já que todos nós, independentemente de cultura, formação e condição, podemos sentir. Ele só quer encontrar seu lugar e viver da sua maneira. E ele consegue. Minari é a raiz que se firma, o sonho que se realiza e a Arte que se expressa.