Leonardo Teixeira
Escrever sobre Michael Jackson é sempre um desafio. Isso porque, considerando o tamanho do artista, fica difícil não querer abraçar o mundo dentro de uma dezena de parágrafos para fazer jus ao tema. Fugir de clichês é outra tarefa intrincada, considerando que o talento Rei do Pop já foi dissecado e exaltado cerca de um milhão de vezes por cerca de um milhão de pessoas e veículos.
Resta contar o meu lado da história. Lá vai.
Quando Michael se foi, o baque foi grande. A partir de junho de 2009, tudo o que se ouvia falar era das causas da morte, as polêmicas, o fantasma em Neverland… As teorias da conspiração me tiraram o sono e os videoclipes foram exibidos à exaustão. Ele teve que falecer para percebemos que, apesar dos 8 anos de reclusão que antecederam os ensaios para a turnê que nunca aconteceu, sua arte nunca deixara de fazer parte das nossas vidas. E isso começou com Thriller (1982, Epic Records).
Em nota escrita no ano de lançamento de Off the Wall (1979), primeiro trabalho fora da alçada da gravadora Motown, MJ deixa claro que não estava pra brincadeira. “Ninguém mais pensará em mim como o menino que cantava “ABC” e “I Want You Back”. Serei um incrível ator, cantor e dançarino, que chocará o mundo”. Nada modesto, o MJ previu o quão longe chegaria ao exigir de si mesmo “ir para além de onde os melhores conseguiram chegar”.
Sua emancipação não foi certeira no objetivo, mas chegou perto. Apesar da influência e dos hits inesquecíveis que rendeu, acompanhados da excelência técnica pela qual a união com o produtor Quincy Jones — que junto a Janet Jackson, Jimmy Jam e Terry Lewis formam as duas parcerias mais icônicas parcerias da música pop — ficaram conhecidos, a celebração absoluta do trabalho do oitavo filho de Joseph Jackson viria quatro anos depois.
O inofensivo dueto com Paul McCartney, “The Girl Is Mine”, não era muito o que o público esperava do novo álbum. Mas o single de estreia para “Thriller” mostra um Michael Jackson muito à vontade na própria pele e essa é uma das mais fortes características do álbum mais vendido de todos os tempos. Aqui reside a primeira das muitas barreiras que o cantor derrubou com seu lançamento de 1982: a barreira da autoestima da pessoa negra.
É bem conhecida a suposta recusa da MTV de incluir “Billie Jean”, segunda faixa de trabalho do disco, em sua programação musical, na qual nenhum artista negro havia aparecido ainda. O presidente da gravadora do Rei teria exigido a faixa no canal, sob a ameaça de todos artistas contratados pelo selo serem retirados da grade. Nada inofensivo, Michael chegara ao topo e passava a exigir o respeito que sempre merecera. A presença de superestrelas brancas, como Eddie Van Halen e o ex-Beatle, deixou claro que a qualidade do trabalho de Jackson ultrapassava as barreiras raciais.
Em posição combativa, Thriller veio cumprir a promessa que seu intérprete fizera si mesmo anos antes. De chegar onde ninguém havia chegado. “Billie Jean” é o clássico exemplo linguagem cinematográfica aplicada à música: a linha de baixo e os sintetizadores expressam a calmaria pessoal de MJ que logo se transforma em paranoia, sucessão que é representada no vídeo. A faixa-título é outra amostra, mais literal, de uma canção nascida para mídia visual, como ninguém havia feito antes.
John Landis (famoso pela comédia de terror Um Lobisomem Americano em Londres) foi escolhido à dedo para tornar a realidade as fantasias hollywoodianas de Jackson com a canção, a última a ser lançada como single, através de um curta metragem musical hiperproduzido. O resultado dispensa maiores explicações e é outra barreira que cai por terra.
Fã de gênios como Fred Asteire e Judy Garland, assim como de toda exuberância da Era de Ouro de Hollywood, o cantor de “Rock With You” recolheu suas referências acabou atingindo sua overdose criativa através de produções audiovisuais. Com isso, basicamente ajudou a definir a cultura pop como a conhecemos hoje: esse amontoado de revisitações às vanguardas para a criação de uma arte nova e excitante.
Ainda assim, Michael nunca deixou de lado o que aprendeu nos tempos da Motown, suas raízes na música negra. Os famosos “gritinhos” do cantor são claros acenos à lenda do rock Little Richard, enquanto que o moonwalk — passo de dança assinatura de Jackson — remonta às apresentações de Cab Calloway, cantor de jazz famoso na década de 1930. No entanto, o que Jackson mostrava como ninguém era a impressão de sua marca d’água em absolutamente tudo o que fazia, para que fosse reconhecido por todos como o artista único que era.
O toque de Midas do Rei do Pop é reconhecível até hoje, desde os agudos de The Weeknd ao último lançamento de Björk. No fim das contas, parte da superexposição de sua vida e obra após a fatídica morte é justificável (ainda que as razões dos veículos jornalísticos não fossem das mais nobres): como se despedir do artista que redefiniu a forma com que consumimos arte? Levando em conta a revisitação constante de sua obra na música moderna, não acho que esse adeus tenha sido dito ainda.
Thriller é a transfiguração do bom-moço sorridente que liderava o Jackson 5 em um artista confiante de que é o melhor de seu tempo. E é agressivo ao provar isso. Se até então à música negra havia sido negado o apreço por seu pioneirismo em detrimento de artistas brancos, MJ reuniu seu talento e criatividade para tomar esse protagonismo para si. E se a arte de Beyoncé e Kendrick Lamar é aclamada como o melhor que o nosso tempo pode oferecer, é simplesmente porque, em 1982, o Rei do Pop reclamou seu lugar no topo, governando um reino utópico de união racial que ele mesmo construíra para si.
Das dezenas de teorias conspiratórias que circundam o nome de Michael Jackson, a que diz que ele ainda vive é a única em que acredito.